A investigação do Cenipa (Centro de Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos), que busca esclarecer as causas da queda do voo 2283 da Voepass, ainda não foi concluída. O ATR-72-500 de matrícula PS-VPB caiu no quintal de uma casa em Vinhedo (SP) no dia 9 de agosto de 2024, matando 62 pessoas. Embora o laudo final ainda não tenha sido divulgado, um cenário já se desenha: a falta de uma fiscalização mais rigorosa por parte da Anac (Agência Nacional de Aviação Civil) pode ter contribuído para a tragédia.
Em uma investigação de três meses, a equipe do Domingo Espetacular, da RECORD, ouviu dezenas de pessoas ligadas à operação e à investigação do caso — entre elas familiares das vítimas, ex-pilotos, ex-funcionários, fiscais da Anac, peritos da Polícia Federal e militares da Força Aérea Brasileira. O que emergiu desses relatos é um retrato de uma companhia aérea que operava com segurança negligenciada, aviões precários e pressão sobre os tripulantes.
Não foi uma fatalidade. Foi uma tragédia construída. Esperada por funcionários. Esperada por passageiros. A própria Anac mostra isso nos relatórios. Não foi só negligência.
O que a Anac viu- e ignorou
Após o acidente com o voo 2283 da Voepass, a Anac iniciou uma operação batizada de “Operação Assistida”, voltada a fiscalizar em profundidade todas as frentes de operação e manutenção da companhia aérea. A medida, tomada por determinação da Diretoria da Anac, teve como foco a Passaredo Transportes Aéreos S.A., nome jurídico da Voepass, bem como a MAP Linhas Aéreas e a Organização de Manutenção certificada pela empresa.
Em quatro meses, foram feitas 9 fiscalizações na base de manutenção em Ribeirão Preto; 12 inspeções em outros aeroportos onde a companhia operava; 41 fiscalizações de rampa, feita diretamente durante o embarque ou desembarque de voos da aeronave; e 16 voos acompanhados por inspetores a bordo.
Neste trabalho, a Anac identificou mais de 2.600 voos irregulares realizados pela empresa. O que se revelou durante os meses seguintes foi uma sucessão de falhas graves e reincidentes, que comprometeram diretamente a segurança dos voos da companhia. Em inspeções de rampa realizadas entre agosto de 2024 e fevereiro de 2025, os fiscais da Anac encontraram danos estruturais não monitorados, manutenção postergada sem justificativa técnica e uso incorreto de manuais para encobrir falhas, entre outros problemas sistêmicos.
Entre os casos identificados estão trincas na carenagem da junção asa/fuselagem de uma aeronave (PR-PDW), sem qualquer registro técnico de avaliação ou monitoramento do dano; danos na fuselagem e em peças críticas como o “jackpot cover”, com exposição de material composto; uso indevido de normas para justificar falhas em componentes considerados importantes para a segurança e, inclusive, a reincidência de operações com sistemas de degelo (de-icing) em condições inadequadas, incluindo diversas infrações por não manter os boots de degelo em condições aeronavegáveis, justamente o sistema apontado como falho no voo PS-VPB, que caiu em Vinhedo.
Por dentro do modelo 72
O ATR-72 transporta até 70 passageiros. Após a queda do voo 2283, protocolos de evacuação e layout da cabine também passaram a ser questionados
Mesmo após constatar essas irregularidades, a Anac levou quase dez meses para tomar uma medida definitiva. O relatório afirma que houve ineficiência no SASC (Sistema de Análise e Supervisão Continuada) da Voepass, uma ferramenta obrigatória para garantir a detecção precoce de falhas operacionais e de manutenção.
O relatório também aponta que a Voepass utilizou referências técnicas erradas nos registros de manutenção para encobrir falhas. Em um caso, a empresa classificou como “cosmético” um dano em carenagem que, segundo a fabricante ATR, “não pode ser considerada um item cosmético, pois tem função crucial de proteção”.
A consequência prática dessa negligência era clara: aeronaves danificadas continuavam voando sem controle, sem monitoramento técnico e sem rastreabilidade da evolução das falhas, uma violação direta às normas da própria Anac.
Como consequência, a agência reguladora lavrou um auto de infração contra a empresa e recomendou a aplicação de sanção restritiva de direito (suspensão ou cassação da certificação da companhia) e multa, citando o histórico reincidente de violações da Voepass.
A Anac conclui, por fim, que a companhia falhou na responsabilidade primária de manter sua frota aeronavegável — uma obrigação expressa no regulamento RBAC 121.363.
Apesar da robustez das constatações, as punições só vieram meses depois, quando a Anac cassou o Certificado de Operador Aéreo da Voepass, já sob intensa pressão pública e política.
Se essas falhas já eram conhecidas e repetidas, a empresa devia ter sido impedida de voar muito antes. A Anac já tinha material para isso. O acidente foi uma consequência da omissão
Familiares das vítimas, ex-funcionários e até mesmo autoridades que atuaram no acidente são unânimes em reconhecer que, se a agência tivesse feito este trabalho de fiscalização anteriormente, o acidente poderia ter sido evitado e a companhia já deveria ter sido impossibilitada de operar, ou forçada a ter mais cautela e zelo com suas operações.
Uma rotina de riscos ignorados
O avião acidentado, prefixo PS-VPB, uma espécie de placa da aeronave, tinha um apelido peculiar entre integrantes da equipe de manutenção da Voepass, era conhecido como “Vitor Pane Bravo” — uma analogia ao prefixo da aeronave no alfabeto fonético, Vitor Papa Bravo. Era uma referência cínica, mas reveladora, do que era sabido nos bastidores da empresa: a aeronave colecionava falhas recorrentes e era alvo constante de “gambiarras técnicas” para continuar operando.
No dia anterior ao acidente, um mecânico que estava se desligando da empresa chegou e falou para a gente: ‘Tô indo despachar o Vitor Pane Bravo’. E riu. A gente brincou com ele, mas era a realidade
Vídeos inéditos obtidos pela reportagem mostram que, na noite anterior à queda, o avião passou por testes mecânicos e, naquela mesma semana, um dos instrumentos que mede a altitude da aeronave exibia uma etiqueta com a palavra “inoperante”.
Era comum tirar peça de um avião e colocar em outro. E a peça que foi substituída voava mais 10 dias em outro avião. Tudo isso sem registro oficial
Evidências de um colapso
A falta de manutenção adequada expôs riscos ignorados por meses
A cultura do medo: pressão sobre os tripulantes
Os depoimentos revelam que havia pressão para que pilotos não registrassem falhas no diário de bordo, pois qualquer registro poderia forçar a parada da aeronave para manutenção. “O dono da empresa ligava direto para os comandantes. Se o avião não decolasse, ele perguntava: ‘Por que está no chão?’. Isso colocava os pilotos em uma posição muito difícil”, contou um ex-tripulante.
A carga de trabalho imposta aos pilotos também era alvo de críticas internas. A ex-funcionária que trabalhava no setor de operações da Voepass relatou que a fadiga era generalizada: “Todos estavam exaustos. Alguns mal tinham tempo para dormir. Trabalhavam por amor, porque sabiam que a chefia não estava nem aí”, disse.
A viúva do co-piloto Humberto de Campos Alencar, que morreu no acidente, confirmou que o marido se queixava do ambiente de trabalho. Pouco antes da queda, Humberto enviou um áudio dizendo que os voos da Voepass nunca eram tranquilos.
Todo mundo culpa meu marido, mas ele foi uma vítima. Ele avisava que as coisas estavam erradas. Eu mudei de cidade, de vida. Recomecei do zero, porque além de perder meu marido, tive que carregar a culpa que jogaram nele.
A reconstrução da tragédia
Com base no relatório preliminar do acidente divulgado pelo Cenipa, a equipe do departamento de videografismo da RECORD trabalhou num processo de reconstrução dos eventos finais relacionados à queda do Voepass 2283 usando softwares gráficos de inteligência artificial.
A empresa
Mesmo diante da tragédia e da cassação, documentos revelam que o proprietário da Voepass, José Luiz Felício Filho, tentou retomar as operações por meio de outra empresa. A manobra, porém, foi frustrada.
A Voepass não respondeu aos pedidos de entrevista feitos pela reportagem. O Cenipa, por sua vez, afirmou que a análise dos dados está em andamento e que o relatório final será concluído “no menor prazo possível”.
Já a Polícia Federal afirmou, em entrevista de Edson Geraldo de Souza, delegado-chefe da unidade responsável pelo inquérito do voo 2283, que “gostariam de ter dado essa resposta há menos tempo? Sim, com certeza. Mas a complexidade do caso e as consequências do que for colocado nesse inquérito policial de apontar, eventualmente, algum culpado, é grave. Então, nós não podemos fazer isso levianamente”.
Voepass em Terra
A frota da Voepass permanece parada, enquanto a empresa enfrenta dívidas milionárias e recuperação judicial
Justiça e memória
Os familiares de vítimas do acidente criaram a Associação dos Familiares das Vítimas do Voo 2283, com mais de 130 integrantes, cuja função é justamente buscar justiça e respostas para eles, mas principalmente evitar que tragédias assim se repitam.
Espero que essa tragédia sirva como exemplo. Que seja um divisor de águas para que outras não aconteçam.
A gente nunca imagina que vai ser a última vez. Me arrependo de quase não ter dado o ‘Feliz Dia dos Pais’ naquela manhã. Graças a Deus que abracei meu pai antes.
Cátia, outra filha do casal Bartnik, guarda mensagens de voz dos pais no celular.
“Eu escuto para matar a saudade. A voz do meu pai, da minha mãe… é o que me resta.

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