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Estúdio|Bianca Fávero e Vicente Andrade*, do R7

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Enquanto nos feeds das redes sociais o mundo da moda parece obcecado em ser ‘natural’, ‘minimalista’ e ‘sem esforços’ com a estética das clean girls, houve um tempo em que o exagero era sinônimo de resistência — e, até hoje, esse grito de rebeldia influencia tendências globais.

No final dos anos 1980, o Japão era conhecido por cultivar um padrão de beleza rígido e bem definido: olhos grandes, pele clara, cabelos longos e escuros. Mas, por volta de 1991, o cenário ganhou novos contornos com a ascensão das Gyarus, um movimento de contracultura que virava esse ideal do avesso. Bronzeamentos artificiais, cabelos descoloridos e maquiagem em excesso eram os visuais adotados por jovens garotas que aderiam ao estilo.


Assim como nos movimentos Hippie e Punk, que surgiram entre as décadas de 1960 e 1970 com a finalidade de contestar padrões sociais e culturais, a moda sempre foi uma das principais armas utilizada contra o tradicional.

Para Andreia Meneguete, pesquisadora da ECA-USP (Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo) em Comunicação, Cultura e Consumo de Moda e Luxo, e docente da ESPM-SP (Escola Superior de Propaganda e Marketing), as roupas vão muito além da função de vestir: elas exercem um papel político, refletindo os ideais sociais de cada época.


“A moda é um fenômeno social que se alimenta do comportamento coletivo. Os movimentos de contracultura funcionam como combustível para a moda se reinventar e transformar isso em estética. A moda é um espelho da sociedade — um retrato que revela o espírito de um tempo, o que chamamos de Zeitgeist”, explica.

O contexto histórico do surgimento do estilo Gyaru se diferencia das contraculturas anteriores. Nesse movimento, as mulheres assumiram o protagonismo na resistência ao que a sociedade determinava — e ainda determina — como “belo” e “aceitável”.Andreia explica que, dentro da moda, há uma influência direta das elites com relação ao ideal estético de cada região:


As pessoas são influenciadas por grupos dominantes, e os grupos dominantes disseminam sempre uma estética padrão que favorece a manutenção deste poder e visão de mundo

Andreia Meneguete, pesquisadora na ECA-USP

Com cabelos grandes, maquiagem extravagante e acessórios excêntricos, as Gyarus chegaram na moda japonesa como um marco inédito e revolucionário. O termo é a adaptação da gíria inglesa ‘gal’ (garota, em tradução livre para o português) com a adaptação fonética japonesa, que transformou a palavra em Gyaru.

Além de seu caráter revolucionário, o movimento também está associado ao sentimento de pertencimento entre as adeptas — que se disseminam ao redor do mundo, incluindo o Brasil.

Gyaru — Rebeldia em Salto Alto 1 Arte R7 Arte R7

Gyarus no Brasil

Yasmin Rodrigues encontrou no movimento o caminho para o amor-próprio Reprodução/Arquivo pessoal - @galxinim

Natural de São Gonçalo (RJ), a carioca Yasmin Rodrigues, de 24 anos, conheceu a vertente Yamanba em 2015, mas só se aprofundou no Gyaru em 2023. Com passagens por outros movimentos, como o Gótico e o Kabuki, ela afirma que “o básico nunca foi uma opção” e que a subcultura japonesa lhe proporcionou algo a mais: o amor-próprio.

“O Gyaru veio numa época em que o autocuidado não existia para mim. Foi uma lição mais de autoaceitação, autoconfiança e uma mistura de nostalgia sem deixar de ser diferente”, revela a jovem.

Apesar disso, nem todas as experiências foram positivas. Yasmin relata que, em visita ao teatro de um shopping da elite carioca, o seu estilo extravagante atraiu olhares de julgamento do público presente no local.

A última vez que saí montada foi para ver a peça de teatro Beetlejuice e as reações, no geral, não foram muito receptivas. Mesmo que eu estivesse num teatro, um lugar que é sobre performance artística, as pessoas não entendem muito.

Yasmin Rodrigues, adepta do movimento Gyaru

Yasmin utiliza diferentes referências para compor sua estética pessoal — que vai desde elementos da era Heisei (período japonês de 1989 a 2019, marcado pela sucessão do imperador Akihito) até figuras icônicas da música brasileira. Entre os artistas nacionais que mais influenciam seus looks está Ney Matogrosso, conhecido pela estética ousada e transgressora que dialoga com o caráter revolucionário do movimento Gyaru.

“Tenho muita influência da moda dos anos 2000, e minhas principais inspirações são as Gyarus da era Heisei. Apesar de ainda não ter conseguido reproduzir nenhum look específico dos cantores que admiro, trago muita influência de grandes vozes da MPB, como Gal Costa, Rita Lee e Ney Matogrosso, que são minhas maiores referências”, afirma.

Estilo nipo-brasileiro

Entre as diversas expressões da cultura japonesa manifestadas em diferentes áreas no Brasil, o estilista nipo-brasileiro Dani Wassano destaca-se por representar a fusão das duas culturas, sem deixar de lado suas raízes, seja na moda ou em sua identidade pessoal. Segundo Wassano, o período político e econômico do Japão foram extremamente relevantes para a criação do Gyaru.

“Nesse período [era Heisei] também aconteceu uma crise econômica no Japão, tanto que no Japão eles chamam a década de 1990 de década perdida, por conta dessa crise que teve. Aí as jovens estavam vendo todo esse cenário e decidiram protestar contra essa grande onda de conservadorismo que estava acontecendo”, pontua.

Estilo extravagante atrai olhares curiosos Reprodução/Arquivo pessoal - @galxinim

Outro fator essencial para o surgimento de um movimento de contracultura liderado por mulheres foi o rígido padrão de beleza japonês. Segundo o estilista, com a chegada dos ideais ocidentais ao país na década de 1990, novas formas de expressão estética se abriram para as japonesas.

Foi nesse contexto que surgiram os elementos marcantes da estética Gyaru — maquiagem exagerada, cabelos loiros e unhas artísticas. No padrão tradicional japonês, explica Wassano, existe o conceito de Yamato Nadeshiko, que simboliza uma feminilidade delicada, caracterizada por pele clara, cabelos pretos, maquiagem leve e unhas curtas.

As Gyarus quebraram esse padrão que estava acontecendo no Japão, porque foi vendo essas referências americanas que estavam sendo muito bem marcadas nos anos 1990, tipo o hip-hop”, diz o estilista.

Dani Wassano, estilista nipo-brasileiro Dani Wassano

Referências orientais no Ocidente

Desde a chegada dos primeiros imigrantes japoneses no Brasil a bordo do navio Kasato Maru, em 1908, a cultura oriental começou a deixar marcas profundas nos hábitos de consumo do Ocidente.

Apesar de não se considerar mais Gyaru, Trixxie não deixou de ocupar um espaço importante na cena alternativa Reprodução/Arquivo pessoal - @trixxiemendes

Mais de um século depois, o Japão segue influenciando gerações, principalmente com a popularização dos animes, impulsionada pela exibição da ‘velha-guarda’ do gênero, como Cavaleiros do Zodíaco, Dragon Ball Z e Pokémon, nos anos 1990.

Foi a partir desse contato com a cultura pop oriental que a influenciadora digital Beatriz Mendes, conhecida como Trixxie, se aventurou pelos blogs, no início dos anos 2000, e se encantou pelos estilos Gyaru e Lolita — outro estilo japonês, este inspirado em vestuário de bonecas vitorianas.

Foi com as lentes de contato e algumas peças e maquiagens que encontrava pelas andanças na região central de São Paulo que a jovem de 26 anos iniciou no movimento.

Foi uma sensação de felicidade muito grande por eu ver que eu estava minimamente parecida com as revistas que eu via. Não gosto nem de falar que eu lia, porque não sei japonês até hoje (risos)”, relembra.

influenciadora digital Beatriz Mendes, conhecida como Trixxie

Apesar de não entender o idioma, Trixxie acompanhava blogs de Gyarus que compartilhavam tutoriais da moda japonesa com outras garotas. De início, por ser muito nova, ela era mais tímida e não usava os looks fora de casa, mas isso não a impediu de tirar fotos e, algumas vezes, compartilhar com a comunidade.

Além de ousado, o movimento é também um estilo de vida que exige certa constância. No Japão, o estilista Wassano explica que as garotas Gyaru têm gírias próprias, caminham pelas ruas como se estivessem em passarelas, escolhem drinks doces e estilosos para sair à noite e até dançam um ritmo exclusivo nas baladas, o Para-Para. Essa intensidade, no entanto, foi o que Trixxie sentiu pesar na rotina quando, em 2016, transformou sua paixão pelo movimento em trabalho com criação de conteúdo. “Hoje só uso o estilo quando me sinto bem para isso. Inclusive, não me considero mais Gyaru, porque acho injusto, já que é um movimento baseado em constância, e eu uso apenas uma vez a cada dois meses”, admite.

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Apesar desse afastamento, a jovem não deixou de ocupar um espaço importante na cena alternativa. Hoje, ela se tornou um símbolo para meninas que desejam explorar estilos fora do padrão, mas que não conseguem por questões socioeconômicas.

A influenciadora ressalta que, muitas vezes, pessoas da periferia não têm acesso ao mesmo consumo que outras classes para manter o estilo japonês.

“Quando a gente olha para o que a Trixxie faz hoje, é muito como um lembrete de que as meninas ainda podem. [...] Elas acabaram entendendo através da Trixxie que ser uma pessoa negra e gostar de coisas alternativas é uma possibilidade”, salienta.

Só vale ser alternativo se for ‘kawaii?’

Enquanto o visual japonês das Lolitas costuma gerar curiosidade devido ao estilo ‘boneca’, nem todas as vertentes de Gyarus são bem recebidas pelo público, especialmente nos subestilos mais ousados.

A diferença não está apenas nas roupas, mas no que cada estética comunica: fofura é bem-vinda, provocação nem tanto. Quando o visual é mais delicado, com tons de rosa ou cores neutras — como nas vertentes Sweet Lolita e Classical —, as garotas costumam receber elogios e até pedidos para tirar fotos.

Mas, a partir do momento em que o estilo deixa o romantismo e parte para o exagero extremo, o olhar do público muda — e o encanto dá lugar ao estranhamento.

Gyaru - Rebeldia em salto alto 2 Arte R7 Arte R7

Subestilos como o Yamanba, inspirado no folclore japonês de uma bruxa de pele escura e cabelos brancos, já são considerados radicais no Japão. Ao chegar ao Ocidente, essa estética incorpora novos signos que reforçam preconceitos locais, associando-a a algo “brega” ou “feio” — como o cabelo volumoso, as unhas decoradas e o animal print.

A influenciadora faz uma ponte entre o estilo nipônico e uma tendência que tem ganhado força nas redes sociais: o fubanga core, que resgata o visual nostálgico dos anos 2000 — com shorts curtos, brincos de argola e saltos altos.“Alguns subestilos dentro do Gyaru usam muita oncinha, animal print e tudo mais. E se você for, principalmente em algumas periferias de São Paulo — ou no meu caso, quando eu morava no Pimentas, em Guarulhos —, vai ver uma tia dessas, com cabelo loiro de água oxigenada, top de oncinha, microshort, unha enorme, e lá está ela, com a cerveja no bar, curtindo o fim de semana”, conta Beatriz.

Seja nas periferias de São Paulo, na Baixada Fluminense ou nos bairros tecnológicos de Tóquio, a influência das Gyarus se manifesta em diferentes expressões da cultura contemporânea. E essa conexão vai muito além da maquiagem ou do figurino. Desde os primórdios, as mulheres são aprisionadas por padrões de beleza impostos por cada época — e a rebeldia Gyaru pulsa como um ato de resistência contra o que a sociedade define como belo e aceitável, no Japão, no Brasil ou em qualquer lugar do mundo.

    R7 Estúdio

    • Diretora de Conteúdo Digital e Transmídia: Beatriz Cioffi
    • Reportagem: Bianca Fávero e Vicente Andrade
    • Edição: Júlia Ramos
    • Coordenação de Arte Multiplataforma: Sabrina Cessarovice
    • Arte: Gabriel Marques Rodrigues
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