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Estúdio|Isadora Mangueira*, do R7

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Fingir gravar vídeos era uma brincadeira de criança para Milena Lira, que, aos 8 anos, se inspirava em outras meninas que compartilhavam o dia a dia na internet. O ano era 2015, auge do sucesso dos youtubers mirins.

Desafios, unboxings, vlogs, gameplays: um novo formato de entretenimento transformava a indústria cultural infantil. “Eu assistia elas gravando aqueles vídeos e me colocava naquele lugar. Pensava, poxa, e se fosse eu?”, diz Milena em entrevista ao R7.


Só que falar para uma audiência imaginária deixou de ser suficiente. Um dia, ela decidiu compartilhar um dos vídeos tremidos que gravava sozinha. “Eu cheguei agora da academia e meu pai preparou uma surpresa para mim. Olha o que eu ganhei!”, narrava animada, ao exibir uma penteadeira de boneca em sua estreia na maior plataforma de compartilhamento de vídeos do mundo.

Milena segura placa comemorativa do YouTube quando atingiu 100 mil inscritos Acervo pessoal

Foi aí que os pais descobriram o novo hobby da filha. Sem entender muito bem em que terreno estavam pisando, eles a orientaram, mas não reprimiram a iniciativa. Muito pelo contrário, abraçaram a ideia, passaram a monitorá-la e, eventualmente, auxiliavam na produção dos vídeos. “Eu não me via brincando de outra coisa, porque no começo realmente foi só uma brincadeira”, conta.


O canal acabou caindo no gosto do público, e, em 2018, Milena já acumulava inscritos fiéis e milhares de visualizações. Quase todos os dias, seus seguidores podiam vê-la se divertir com atividades populares entre as crianças da época.

Naturalmente, o carisma de Milena e o engajamento do público chamaram a atenção das marcas, que passaram a procurá-la para parcerias. Foi nesse momento que a brincadeira se transformou em trabalho de gente grande — com demandas, prazos e, claro, retorno financeiro.


De início, a visibilidade a deixou feliz. Só que com ela vieram atribuições com as quais uma criança não está preparada para lidar: “Eu comecei a ficar muito cansada, e também com essa dificuldade de administrar as coisas.”.

E então veio a pandemia da Covid-19, que deixou Milena confinada não apenas em sua casa, mas também restrita ao seu local de trabalho. “Minha aula acabava, eu via o que tinha para fazer e depois ia gravar”.

ARTE ESTÚDIO EXPOSIÇÃO Arte R7 Arte R7

A empolgação deu lugar à autocobrança e à necessidade de agradar quem a acompanhava. Ela conta que priorizava a escola, mas que, em determinado momento, o cansaço começou a atrapalhar os estudos.

A constante necessidade de atingir um número de curtidas, comentários e seguidores também tornava inconsciente o ato da comparação. “Você acaba esperando muito dos outros, o que as pessoas vão achar, o que as pessoas vão gostar”, diz Milena.

Esse é um dos riscos que a superexposição precoce oferece ao desenvolvimento saudável de uma criança, segundo a pesquisadora Nara Helena Lopes, especialista em psicologia da experiência digital.

“Essa dependência de curtidas, de reconhecimento, vai predispondo a um quadro que, talvez mais para frente, vai repercutir num estado mais grave de saúde mental”, afirma Nara. Foi o que aconteceu com Milena: após seis anos criando conteúdo, o corpo da garota sucumbiu à rotina.

Era mais um dia normal, onde eu tinha que gravar aqueles vídeos que eu tinha que entregar. E aí, me arrumando, eu comecei a sentir uma coisa que parecia que eu ia falecer. Eu comecei a ficar sem ar. Minha mãe entrou no meu quarto, se assustou, e eu já não conseguia falar nada

Milena Lira

Sem entender os efeitos da exaustão no próprio corpo, a adolescente desatou a chorar. “Não conseguia formar uma frase. A minha cabeça chegou num nível que eu não conseguia pensar. Foi uma crise de ansiedade, uma das primeiras que eu tive por conta da internet”, revela.

Desafio antigo, novas dimensões

Não é de hoje que a exploração da imagem de crianças e adolescentes nas redes sociais é alvo de discussão e preocupação. Talvez mais de especialistas do que do público, consumidor ávido de tabloides que, ao longo dos anos 1990 e 2000, se habituaram a narrar histórias de derrocadas polêmicas de estrelas mirins.

Em maio de 2020, um caso ganhou o noticiário e chocou quem acompanhava uma youtuber que acabara de se tornar adolescente: internautas se uniram para “salvar” Bel para Meninas, acusando a mãe da garota de a expor a situações vexatórias em troca de visualizações — ambas negam as acusações até hoje.

Em 2023, a denúncia de Larissa Manoela contra seus pais e empresários por suposta má-gestão do patrimônio adquirido por ela como atriz mirim acendeu mais uma vez o debate sobre a exploração do trabalho artístico infantil no Brasil.

Os dois casos demonstram como a questão ganhou espaço no imaginário brasileiro, em especial com a migração da atividade para as mídias digitais. Se antes os principais locais onde se empregava legalmente crianças e adolescentes eram sets de gravação ou palcos de peças e shows, facilmente fiscalizados, hoje, os artistas mirins atuam da “privacidade” de suas casas.

A modalidade é uma exceção à proibição do trabalho para menores de 14 anos, mas, se suas regras já possuíam brechas que permitiam situações como a de Larissa, o avanço da economia de influência tem se mostrado ainda mais obsoleta.

Atualmente, para que crianças e adolescentes participem de conteúdos produzidos para as redes sociais, uma decisão da Justiça do Trabalho exige que seja emitido um alvará judicial. Milena, no entanto, não precisava de nenhuma autorização para protagonizar vídeos em seu canal, mesmo quando ele era monetizado — processo pelo qual criadores de conteúdo ganham dinheiro no YouTube.

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Na época, ela só precisava ser autorizada para fazer publicidade de produtos. Mas, mesmo nesses casos, as marcas — que deveriam ser as primeiras interessadas em exigir a documentação — nem sempre obedeciam ao processo legal. As empresas foram as primeiras a entender o potencial de capitalização do fenômeno dos influenciadores mirins.

O negócio funciona da seguinte maneira: uma empresa entra em contato e oferece uma amostra de seu produto ao influenciador, que compartilha com seu público o “recebidinho”. Ainda que não exista uma negociação de valores pela divulgação, o trabalho está feito. Os seguidores conhecem a marca e, influenciados pela opinião positiva de alguém que admiram, são inclinados a consumi-la.

Milena não entra em detalhes, mas afirma que marcas grandes já a abordaram sem fazer questão das autorizações legais. Seus pais, no entanto, sempre tiveram todas as documentações em dia “por uma questão de ética”.

O que diz a lei

O juiz titular da 4ª Vara da Infância do Rio de Janeiro, Sérgio Ribeiro, explica o princípio do melhor interesse da criança, estabelecido pelo ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente). “Toda atividade tem que ser vista de forma que a beneficie, se ela realmente vai beneficiá-la ou se vai atender a outros interesses”, diz.

Considerando que eles têm direito à liberdade de expressão artística, o Brasil ratifica o entendimento da Convenção 138 da OIT (Organização Internacional do Trabalho): a atividade artística pode ser exercida por menores de idade, desde que estes não tenham saúde, educação e desenvolvimento prejudicados.

ARTE ESTÚDIO EXPOSIÇÃO Arte R7 Arte R7

“Há toda uma conjugação de fatores que tem que ser observada para ver se pode haver essa exposição”, explica Ribeiro. Segundo ele, para a expedição do alvará são avaliados o conteúdo da produção artística, se a função a ser exercida pode causar algum dano à criança, se ela está matriculada na escola e se o trabalho atrapalha o seu rendimento escolar.

O desejo da criança ou do adolescente também deve ser considerado, conforme seu grau de desenvolvimento. “Se for um anúncio de fralda com bebê aparecendo, não vai ter essa oitiva. Mas, se a criança já for mais crescida, com possibilidade de se manifestar, ela tem que ser ouvida também”, pontua.

Casos recentes de grande repercussão, no entanto, têm mostrado que violações de direitos do trabalho infantil estão longe de acabar. “A meu ver, o poder público não tem atuado devidamente, até em razão da falta de uma legislação pertinente”, argumenta o juiz.

O magistrado acredita que essa realidade pode mudar com o ECA Digital. A nova lei, sancionada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva em 17 de setembro deste ano, estabelece regras a plataformas digitais para proteger menores de idade no ambiente online. Na prática, as próprias redes sociais se tornarão responsáveis pelas violações de direitos de crianças e adolescentes que ocorrerem em seus aplicativos.

Antes, não havia uma fiscalização a contento, até pelo gigantismo dessa fiscalização e a estrutura insuficiente da administração pública. Mas também não havia uma legislação que permitisse essa proteção com o grau que o ECA Digital permite agora

Sérgio Ribeiro, juiz titular da 4ª Vara da Infância do Rio de Janeiro

Regulação das mídias digitais

O autor do projeto que deu origem à lei é o senador Alessandro Vieira (MDB/SE), cuja experiência como delegado de crimes cibernéticos inspirou a defesa da regulação das mídias digitais. Entre as preocupações que motivaram a elaboração do PL, o político cita redes comerciais de exploração sexual infantil espalhadas pela internet, e destaca a dimensão da presença online dos brasileiros.

De acordo com uma pesquisa da plataforma DataReportal, o Brasil é o segundo país com maior tempo de tela no mundo, com uma média aproximada de 9 horas e 32 minutos online por dia. “A gente já sabe que o algoritmo tem um desenho feito para manter você na tela, e a gente sabe que aquilo que mais engaja o ser humano, infelizmente, é o grotesco, é o agressivo, e é também o pornográfico”, pontua Vieira.

Nos últimos meses, uma face mais grave da presença de crianças e adolescentes na internet foi exposta pelo influenciador Felca. No vídeo “Adultização”, publicado em seu canal do YouTube, ele analisa como a lógica algorítmica das redes impulsiona o consumo de conteúdos infantis com teor sexual.

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Milena sentiu na pele os efeitos desse comportamento predatório: “Eu via que os posts que eu tava de maiô, numa piscina, numa praia, eram os que mais chamavam atenção, porque parecia que era o que o algoritmo entregava. A gente via que as visualizações eram muito maiores do que quando eu estava mostrando um slime, por exemplo”. Apesar do filtro de seus pais, ela notava comentários esquisitos de homens mais velhos.

“Ao longo da discussão, especialmente depois do vídeo do Felca, se incluiu uma preocupação maior com a questão da monetização. Essas contas que hoje são de usuários abaixo de 16 anos passam a ser obrigatoriamente vinculadas às contas do adulto responsável”, explica o senador, ao ressaltar que a diretriz viabiliza a implementação do que já era determinado pela legislação vigente.

“A grande diferença está em você contornar aquilo que era uma suposta irresponsabilidade das plataformas em verificar idades e filtrar conteúdos ou proteger os melhores interesses das crianças e adolescentes. Empoderar os pais, as famílias, para que façam o acompanhamento”, diz.

Até março de 2026, quando a lei entra em vigor, as redes sociais devem disponibilizar ferramentas acessíveis de supervisão parental e implementar mecanismos que impeçam o contato de crianças e adolescentes a conteúdos ofensivos ou inadequados.

Vieira destaca a importância de compreender o processo de constante evolução do ambiente digital: “Até o Marco Civil da Internet, se via a rede como uma coisa neutra, democrática, livre. Conforme o tempo foi passando, as pessoas foram assimilando a realidade, que é totalmente diversa. O ambiente não é livre e não é seguro, ele é um ambiente totalmente direcionado”.

Milena se tornou estudante de psicologia e compartilha rotina nas redes de forma "mais leve" Acervo pessoal

Ele também pontua que não é o objetivo do texto coibir a expressão do talento infantojuvenil. “Nós temos artistas, jovens que muito cedo ingressam nesse caminho, e também não faz sentido cercear totalmente o espaço deles. O que a gente quer? Como a gente já tem na vida real, é que você tenha toda uma rede de proteção e de responsabilidades ali. A plataforma, os pais responsáveis, todos eles numa cadeia de responsabilidade”, completa.

Risco anunciado da superexposição infantil

Nem o respaldo legal, nem a proteção dos pais blindaram Milena dos riscos da superexposição. “O problema dos influencers mirins é que, em geral, eles acontecem dentro de casa, e esses pais muitas vezes não têm noção das repercussões que isso pode desenvolver”, explica Nara.

Não é à toa que o direito à privacidade é assegurado pela Constituição Federal. É nesse lugar seguro que o cérebro infantil aprende sobre os limites de seu espaço pessoal e de seu senso de intimidade. Uma criança que tem sua imagem explorada pode passar, segundo a psicóloga, a se reconhecer como um objeto, um produto a ser consumido.

A gente tem o grande tema dos adolescentes, de uso do corpo, de não perceber que a gente é uma entidade subjetiva que precisa de proteção, privacidade, afeto, reconhecimento. Essa criança pode ir crescendo e não perceber que suas próprias exposições podem estar trazendo riscos de violência e de assédios de várias naturezas

Nara Lopes - especialista em psicologia da experiência digital

Ao longo da entrevista, Milena salienta que não tinha noção do que seu canal viria a se tornar: “Todos os conselhos que minha mãe me deu naquela época, hoje eu entendo perfeitamente. Ela realmente estava muito certa de que eu não tinha aquela visão de que aquilo ali era a internet, que eu estava ali, iria ser exposta”.

A especialista destaca que, além dos impactos provocados por uma situação de exploração do trabalho, existe a possibilidade de um prejuízo socioemocional pela falta de interação com o mundo real.

Milena conta que fez poucas amizades que levou do YouTube para a vida. “As conversas são sempre as mesmas, porque são coisas que estão em alta, então faltava para mim ali uma personalidade, uma diversidade. Era, realmente, um mundo irreal”, revela.

Crescer sob os holofotes a fez entender algumas coisas muito cedo: o peso de suas palavras, atitudes e posicionamentos. O poder de influência que tinha para uma audiência, majoritariamente, de crianças. “Hoje eu tenho 18 anos, mas com 15, 16 eu já tinha atitudes que estavam além para pessoas da minha idade”, conta.

Os efeitos da exposição excessiva na saúde da menina que começou nesse universo achando que tudo se tratava de uma brincadeira não demoraram a aparecer. No auge da pandemia, quando ela tinha 14 anos, Milena foi diagnosticada com depressão.

Durante os dois anos em que ficou afastada das mídias para tratar o transtorno, sua vida ‘real’ voltou a dar o ar da graça e ela se tornou a melhor aluna da turma. Mas o comportamento característico de uma adolescente já havia se perdido.

“Eu tirei um notão na redação do Enem por dois anos, porque eu ficava me cobrando, então eu tratava aquilo ali como um trabalho. As pessoas falavam ‘nossa, como você é madura, como você consegue lidar com essas coisas?’, mas eu não vejo isso hoje como uma forma positiva, porque foi muito precoce”, confessa.

Ela também não estava preparada para lidar com o ódio disseminado na internet. Quando não tinha nem 10 mil inscritos em seu canal, um comentário de outra criança a chamando de “vaca” a chocou.

“Eu fiquei muito mal com aquilo, comecei a chorar. Eu não acreditava que alguém tinha me chamado daquilo. Era uma ofensa, para mim, muito grotesca”, lamenta. Para a especialista em psicologia da experiência digital, “o influencer acaba entrando nesse grau de prejuízo social em geral, em nome de uma marca, de um produto, de uma venda, e isso é um prejuízo para a sociedade”.

Um novo começo

Diferente de muitos casos, Milena reforça que a exigência sobre a criação de conteúdo nunca veio de seus pais, que apoiaram sua decisão de se afastar das redes. “Eu sabia que o problema não eram os meus pais. Mas, ao mesmo tempo, eu não queria envergonhar as pessoas, porque eu já tinha um público”, diz.

Após o diagnóstico de depressão, a família de Milena buscou apoio psiquiátrico. Ela começou a tomar antidepressivos e a se consultar regularmente com um psicólogo.

ARTE ESTÚDIO EXPOSIÇÃO Arte R7 Arte R7

Em 2025, mais consciente e preparada para encarar esse ambiente, ela decidiu voltar, mas dentro de outro contexto. Agora estudante de psicologia, ela utiliza o Instagram e o TikTok para, ocasionalmente, compartilhar sua rotina na faculdade e conteúdos sobre saúde mental.

Milena não se arrepende do passado, mas é categórica ao dizer que não voltaria a se expor e assumir demandas da mesma maneira. “Hoje eu faço diferente. Eu sinto que é uma conquista, para mim, estar de volta na internet, do jeito que, por aquele tempo, eu queria que tivesse sido”.

R7 Estúdio

  • Diretora de Conteúdo Digital e Transmídia: Beatriz Cioffi
  • Reportagem: Isadora Mangueira
  • Edição: Júlia Ramos
  • Coordenação de Arte Multiplataforma: Sabrina Cessarovice
  • Arte: Gabriel Marques Rodrigues
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