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Notícias|Augusto Fernandes, do R7, em Brasília

A cada dia, em média 25 pessoas saem da fila de espera por um órgão no Brasil. Em 2024, pelo menos 9.216 vidas foram salvas no país após a realização de um transplante, um dos maiores números da série histórica do Ministério da Saúde, iniciada em 2001. Por trás dessas estatísticas estão famílias que escolheram transformar dor em esperança, pacientes que renasceram e profissionais que não pouparam esforços para fazer com que uma vida que parecia perdida ganhasse uma nova oportunidade.

Parte importante dessa rede de apoio não fica dentro dos hospitais e muitas vezes sequer tem contato com a família de quem doa e quem vai receber o órgão. São motoristas, pilotos, policiais e bombeiros que correm contra o tempo cruzando rodovias e céus para garantir com que o gesto de solidariedade de uma família em luto mude o destino de quem aguarda por um recomeço.


Foi assim com Maria Helena Gouveia, 70 anos. Era 1º de outubro de 2024, e o dia ainda não tinha nem amanhecido, mas ela já estava de pé. Desde que ficou sabendo que precisaria fazer um transplante de fígado, essa era a quarta vez que ela era avisada que havia um órgão que poderia servir para o corpo dela. Nas oportunidades anteriores, o transplante não ocorreu. Mas desta vez, ela estava certa que sairia da fila e não voltaria para casa chorando por não fazer a cirurgia.

Enquanto ela ia para o hospital, o fígado era transportado do Espírito Santo ao Rio de Janeiro em um avião da Força Aérea Brasileira. Maria Helena entrou na sala da cirurgia antes que a aeronave pousasse no Aeroporto Internacional Tom Jobim, a aproximadamente 25 km de distância do Hospital Adventista Silvestre, onde ela faria o transplante. Depois que o avião chegou ao Rio, a caixa térmica com o órgão precisou trocar de transporte. A opção foi levar o fígado em uma viatura da Secretaria Estadual de Saúde do Rio de Janeiro, pois não seria possível completar o trajeto de helicóptero pela ausência de um heliponto no hospital.


O jeito mais rápido de fazer essa viagem por terra seria usando a Linha Vermelha, uma das vias expressas mais movimentadas do Rio. Como em qualquer horário de pico em um dia de semana, o trânsito era intenso. Os carros quase não andavam. O fígado não podia demorar muito para chegar ao hospital devido ao tempo de isquemia (prazo que um órgão aguenta ficar fora do corpo sem receber sangue). O que a Maria Helena aguardava tinha sido retirado do doador por volta das 2 horas da manhã de 1º de outubro e teria um prazo de até 12 horas para ser transplantado para o corpo dela.

Mas a Polícia Militar montou uma operação para escoltar o carro que levaria o fígado. O Batalhão Tático de Motociclistas bloqueou os dois sentidos da Linha Vermelha para dar passagem à viatura guiada pelo motorista Walmir Alves, 62. Com uma moto à sua frente abrindo caminho, ele teve pista livre para levar o órgão que salvaria a vida de Maria Helena. Walmir andou até na contramão para chegar a tempo de entregar o fígado em boas condições para o transplante. E deu certo.


“Eu já tinha vindo três vezes, e não foi compatível. Aí eu voltava para casa, descia chorando, mas dizia: ‘Não. Vou ser forte. Eu vou ser forte porque a minha hora vai chegar’ — como chegou”, comemora Maria Helena.

Ainda sob acompanhamento para avaliar se o novo fígado não vai ser rejeitado, ela detalha com um misto de emoção e alegria os momentos que antecederam o transplante. “Nós saímos de casa 4 horas da manhã, quando deu 5 horas eu já estava aqui. Ele [fígado] que demorou a chegar. Eu estava ansiosa esperando ele. Eu sabia que eu ia ficar”, conta.

“Eu vi eles, os policiais. Eu vi eles acompanhando o carrinho branco. Eu digo: ‘Esse carro é o meu!’. Às vezes, até hoje ainda falo: ‘Esse carro é o meu! Está vendo, meu carrinho? Como que ele entrou, a avenida livre só para ele?’. Se não conseguissem fechar as avenidas, eu ia voltar para casa mais uma vez”, acrescenta.

O carrinho branco da Maria Helena é conduzido por um motorista que desde 2018 dedica madrugadas, dias e noites na missão de levar órgãos para quem espera por uma segunda chance. “A gente se entrega de corpo e alma. Tanto que a gente faz 24 horas. Não tem hora para a gente”, afirma Walmir. “O que eu penso é só salvar. Veio na minha mão, vamos embora. É o que a gente tem que fazer, não tem outra coisa: é salvar”, completa.

Assim como Maria Helena, ele foi avisado logo cedo sobre o fígado que chegaria do Espírito Santo naquele 1º de outubro. Assim que colocou a caixa térmica que acomodava o órgão dentro do carro, já saiu no encalço dos batedores do Batalhão Tático de Motociclistas da PM. A experiência como motorista de ônibus antes de trabalhar com o transporte de órgãos o ensinou que cumprir aquele trajeto na Linha Vermelha em horário de trânsito carregado levaria pelo menos 1 hora. Mas graças à escolta, ele chegou ao hospital em 35 minutos — tempo recorde, segundo Walmir.

“Sozinho, não tem como. Infelizmente, mesmo a gente com a sirene, as pessoas não saem da frente como elas saem com os batedores. E qual é a nossa missão? É manter a tranquilidade, porque a adrenalina com eles é muito forte. Com eles não tem sinal, não tem cruzamento, não tem trânsito, não tem nada. Quando eles abrem o caminho, você tem que seguir. O que tiver pela frente, a gente passa. Não tem jeito. É prioridade. Até porque a vida estava esperando, não é? Era um momento que a gente precisava acelerar para poder chegar rápido. E graças a Deus, deu certo”, celebra o motorista.

Um dos policiais que ajudou Walmir naquele dia foi o terceiro-sargento Daniel Vilela, 37. Ele já atuou no deslocamento de autoridades e comboios militares, mas afirma que nenhuma missão é tão relevante quanto a de ajudar no transporte de um órgão.

“Não que os outros sejam menos importantes, mas esse é o serviço mais perigoso que a gente executa em termos de prioridade para poder tentar chegar o mais rápido possível, porque o órgão tem o tempo de isquemia. O mais rápido que a gente conseguir chegar com esse órgão, mais tempo os médicos têm para poder fazer o procedimento”, diz.

“É a escolta que eu mais gosto de fazer. Esse serviço, apesar de ser o mais perigoso, é o mais gratificante para a gente. Chegar no hospital e ver a equipe médica agradecendo, ver os familiares do receptor esperando, muitas vezes chorando, e agradecendo também… É uma emoção muito grande você estar colaborando para poder salvar uma vida. A gente se sente como o médico que vai fazer a cirurgia, porque cada profissional é importante nas suas devidas proporções. A gente se sente um elo dessa corrente”, destaca Daniel.

Quem também se sente assim é Walmir. “O que passa pela gente é a emoção de chegar logo, no momento certo para salvar uma vida. Isso, para nós, não tem preço. E o resultado é bem melhor. Não adianta você fazer aquilo tudo se no final não der tempo. Esse é o assunto-chave. Quando você sabe que a pessoa foi salva, a gratificação é essa”, destaca o motorista, que diz sempre se colocar no lugar de quem espera pelo órgão.

“Imagina você nessa situação? Um parente seu está no hospital há vários dias dependendo de um órgão. Aí você tem a notícia que apareceu um órgão para ele. Poxa, você saber que tem um órgão que vai salvar seu parente, isso não tem preço. Aí, é quando vem a nossa missão, de chegar lá naquele lugar com um órgão para salvar a vida daquela pessoa. Isso que é bacana. Você saber que aquela pessoa que estava morrendo já está viva de novo. Isso que é bonito. Ela voltou a viver novamente. As esperanças voltaram para ela. A nossa maior felicidade é essa.”

Toda essa mobilização garantiu o sucesso do transplante da Maria Helena, que só consegue sentir gratidão pelas pessoas que participaram desse processo. “De todas as doutoras até as meninas da enfermagem, nunca tive decepção. Sempre me botaram para cima. Por um instante, pensei: ‘Pronto, acabou o mundo’. Mas aos poucos, fui me sentindo forte. Dos menores até os maiores, só gratidão por eu ter feito essa cirurgia tão rápido. E também vai passar rápido, se Deus quiser. Daqui a uns dias eu estou com três, seis, nove, doze meses [de recuperação]. Aí sim: Helena vai voltar.”

O principal agradecimento dela é para a família do doador. “Que Deus proteja e conforte eles. Ele [fígado] chegou na hora certa para me salvar. Se não fosse essa doação… Que papai do céu conforte eles”, desabafa Maria Helena, com lágrimas nos olhos ao lembrar que o transplante permitiu que ela voltasse para casa para ver mais uma vez os dois filhos, as duas noras, os quatro netos e o bisneto dela.

O doador foi Paulo Cezar Guerra dos Santos, 55, que morreu após sofrer um AVC. Além do fígado que salvou a vida da Maria Helena, a família autorizou a doação dos rins, e um deles foi transplantado para um homem que mora em São Paulo.

Filha do Paulo Cezar, Maiana Guerra Gonçalves, 31, ainda tenta assimilar a perda repentina do pai. Em 26 de setembro, ele passou mal após sentir uma forte dor de cabeça enquanto estava no trabalho. Paulo Cezar foi levado às pressas para o hospital, onde foi constatado que ele teve hemorragia cerebral. Ele precisou ser entubado e foi transferido em estado crítico a um leito de UTI no dia seguinte. Dois dias depois, foi confirmada a morte encefálica, caracterizada pela perda completa e irreversível das funções do cérebro.

A partir do diagnóstico de morte encefálica, que deve ser constatada por mais de um exame, inicia-se o processo de entrevista familiar para a doação dos órgãos. Paulo Cezar nunca tinha manifestado essa vontade enquanto estava vivo, mas Maiana foi informada que o pai poderia doar os rins e o fígado. Mesmo em meio ao luto e pega de surpresa sobre essa possibilidade, ela concordou com o procedimento.

Primeiro, a equipe médica procurou potenciais receptores dentro do estado, mas não encontrou. Com isso, a busca por quem poderia receber os órgãos foi ampliada para outras unidades da Federação, até que ficou constatado que Maria Helena e um paciente de São Paulo eram compatíveis.

Maiana estava em um cartório para pegar a certidão de óbito do pai quando ficou sabendo da força-tarefa que precisou ser montada para que o fígado doado por Paulo Cezar chegasse ao hospital onde Maria Helena faria o transplante. Naquele momento, ela não conteve as lágrimas.

“Comecei a chorar. Ali, caiu a ficha para mim. Foi um misto de sensações. Eu estou com o atestado de óbito, mas o meu pai está servindo, dando vida a uma pessoa”, observa. “Ainda estou vivendo o luto, mas me sinto confortada. Toda hora que eu lembro disso, eu tenho certeza que ele faleceu — meu pai, inclusive, está enterrado em um cemitério na frente da minha casa. Mas você não imagina que a morte possa gerar vida. Eu perdi um, mas ganhei dois. Eles não precisam ser meus parentes, mas eu ganhei. Eu pude salvar vidas mesmo não sendo médica. Só pelo meu ato, um simples ato de desapego”, completa.

O processo de doação de órgãos era algo que até então Maiana não tinha tanto conhecimento, e ela acreditava que isso era algo normal. Mas só depois do que aconteceu com o pai que ela teve noção da complexidade do tema e de quantas pessoas estão na fila por um órgão. Segundo o Ministério da Saúde, são pelo menos 45 mil nessa situação. Algumas, contudo, não conseguem esperar. Em 2024, ao menos 2.595 pessoas morreram na fila, de acordo com a Associação Brasileira de Transplante de Órgãos.

Maiana diz ter recebido milhares de mensagens pelas redes sociais de pessoas prestando condolências pela morte do pai e a parabenizando pelo gesto. Até profissionais da equipe médica que acompanhou Maria Helena entraram em contato para falar que o transplante foi um sucesso. Ela também foi procurada por pessoas que estão na fila de espera — como uma mãe que aguarda um pulmão para a filha —, que pediram a Maiana para compartilhar as histórias delas, na tentativa de conscientizar mais pessoas sobre os desafios de quem precisa de um transplante.

“Eu não preciso saber a dor do outro para poder ajudar alguém, mas eu pensei que se fosse meu pai, eu ia ficar muito feliz se alguém doasse. É aquela questão de fazer o bem sem olhar a quem. É sororidade, empatia e amor ao próximo. Eu acho que a gente não precisa passar por um momento difícil ou ter que conhecer alguém nessa situação. A gente tem que ter esse desapego sobre uma coisa que já não é nem mais nossa”, pontua.

O transplante de Maria Helena teve um significado ainda mais especial porque ela perdeu o marido em 2016 devido a um problema no coração. Ele teve a chance de fazer uma cirurgia para receber um coração novo, mas não quis. “Nós lutamos. Eu até discuti com o médico. ‘Doutor, vamos pegar ele à força, vamos fazer essa cirurgia nele, a gente depende dele’, e ele não aceitou. O tempo passa, mas eu ainda não estou curada. E eu tinha medo de passar pelo mesmo processo dele, mas Deus não deixou. Me deu força, muita força.”

Maria Helena pede a quem está na fila de espera por um órgão que não desista. “Eles têm que acreditar que a hora deles vai chegar. Têm que fazer as coisas tudo direitinho e ir ao médico. Todos têm que ter força, muita força. Dá trabalho, mas é uma luta que não dá para desanimar”, ressalta.

Sistema Nacional de Transplantes

A logística que permitiu que os órgãos doados por Paulo Cezar salvassem duas vidas é definida pelo SNT (Sistema Nacional de Transplantes), do Ministério da Saúde. Segundo a pasta, o sistema cuida de todo o processo de doação, captação e distribuição de órgãos. Cabe à Coordenação-Geral do Sistema Nacional de Transplantes monitorar o processo de doação e transplantes no país por meio da Central Nacional de Transplantes. O Ministério da Saúde afirma que ao menos nove de cada dez transplantes realizados no Brasil acontecem por meio do SUS (Sistema Único de Saúde).

A Central Nacional de Transplantes trabalha em conjunto com as Centrais Estaduais de Transplantes de cada uma das 27 unidades da Federação. Os estados fazem o cadastro de quem precisa de um órgão e monitoram casos de morte encefálica para identificar potenciais doadores. As centrais estaduais têm o auxílio de Organizações de Procura de Órgãos, formadas por profissionais que amparam as famílias e explicam sobre a possibilidade de doação. Para que o procedimento ocorra, a família precisa dar o aval. Mesmo que em vida a pessoa tenha afirmado que queria ser doadora após a morte, esse processo não acontece se não houver a autorização dos parentes dela.

Após a constatação da morte encefálica, a respiração da pessoa é mantida sob aparelhos para preservar os órgãos vitais que podem ser doados. Ela fica assim até que a família tome uma decisão sobre doar ou não. A partir do momento em que a doação é permitida, começa uma corrida contra o tempo.

A Central Estadual de Transplantes avalia entre as pessoas que estão na fila de espera quem tem prioridade. São levados em consideração critérios como tempo de espera, gravidade do caso, risco de morte e compatibilidade com o doador. Além disso, crianças e adolescentes de até 18 anos são priorizados para fazer um transplante caso o doador seja da mesma faixa etária.

Se a central não localizar receptores dentro do estado, a busca é ampliada para outras unidades da Federação. Assim que são encontradas as pessoas que atendem aos requisitos necessários, é feita a cirurgia para retirar os órgãos do doador. Daí, entram em campo todos os profissionais que fazem o deslocamento até onde estão os receptores. E isso pode acontecer a qualquer hora do dia.

“A gente trabalha 365 dias no ano. Às vezes eu estou em casa, em uma festa ou de folga, e acabam me comunicando. Como você vai ficar em casa ou com a sua família enquanto alguém está esperando um fígado ou um rim, a única vez na vida que essa pessoa vai ter essa oportunidade? Essa oportunidade tem que ser bem vista pelos órgãos competentes. A gente faz um trabalho muito específico e gratificante. E a gente faz isso com amor”, diz o motorista da Central Estadual de Transplantes de Santa Catarina Alexandre Carlos dos Santos, 55.

Em algumas situações, os motoristas fazem a viagem acompanhados pela equipe médica que vai retirar os órgãos do doador ou que vai realizar o transplante no receptor. A responsabilidade aumenta, mas os condutores fazem de tudo para garantir que a viagem vai ser concluída em segurança, possibilitando que a vida de quem está na fila de espera seja salva.

“O que eu fico gratificado é quando a gente termina o transporte, e você vê a equipe entrando no hospital. Eu penso: ‘Mais um’. As equipes médicas confiaram no nosso trabalho. A gente fica muito contente de trazer com segurança as equipes e os órgãos. Isso, para mim, não tem preço. É difícil, mas basta entender e ter vontade de fazer”, comenta o motorista da Central Estadual de Transplantes do Paraná Sérgio Ricardo Araújo, 49.

Graças à contribuição dada pelos dois motoristas, Paraná e Santa Catarina hoje lideram o ranking dos estados que mais enviam órgãos para outras unidades da Federação. Dados levantados pelo R7 via LAI (Lei de Acesso à Informação) mostram que, de janeiro a setembro de 2024, a Central Nacional de Transplantes intermediou o transporte de 1.598 órgãos pelo país, sendo 340 de doadores do Paraná e 126 de Santa Catarina.

A Central Nacional não atua em todas as distribuições de órgãos, visto que as Centrais Estaduais são responsáveis por organizar os processos logísticos para transplantes quando localizam um receptor dentro do próprio estado e contabilizar cada caso. As formas para a realização do transporte variam de acordo com a disponibilidade dos recursos ofertados (aviões, helicópteros ou carros), bem como do tempo de isquemia do órgão.

Desde 2010, Alexandre Carlos faz esse trabalho. Hoje, se reveza com outros cinco motoristas, que levam os órgãos para os hospitais onde acontecem os transplantes. Quando a viagem por terra vai ser maior que o tempo de isquemia do órgão, ele faz o trajeto até o heliponto mais próximo para que um helicóptero possa concluir a missão. Nos casos em que a doação é para um receptor em outro estado, Alexandre Carlos deixa o órgão em algum dos aeroportos do estado, como o de Florianópolis e o de Navegantes. Segundo ele, no caso do de Navegantes, se o trânsito estiver muito complicado, às vezes é preciso recorrer a uma balsa para encurtar a chegada.

Além de atuar no transporte dos órgãos, Alexandre Carlos precisa atender outras demandas nos locais onde os pacientes que aguardam por um transplante passam por tratamento. Isso fez com que o motorista acompanhasse desde o início o processo de algumas pessoas que estavam na fila de espera, e muitas delas receberam órgãos que foram levados por ele.

“Como a gente trabalha mais na ponta, acaba vendo o processo de frente. A gente vê as famílias, tanto do doador, quanto do receptor. Nos dias seguintes, quando eu retorno nesses hospitais, eu vejo os próprios beneficiários dos órgãos que foram implantados, que conseguiram se restabelecer para a vida. É nesses momentos que a gente entende que faz diferença no processo, mesmo fazendo um pequeno serviço, um pequeno gesto, de estar próximo e disponível, de ser responsável pelo transporte do órgão. Essa é a gratificação: estar ali e saber que a gente pôde ajudar essas pessoas a ter vida futura, ver seus familiares, ver seus netos, ver suas esposas, ver seus filhos. A poder sair daquela dor. Posso dizer que sou um felizardo por trabalhar com isso.”

Sérgio Ricardo está há uma década atuando nesse trabalho. Ele fica horas na estrada longe da mulher e do filho, dirige sozinho durante a madrugada ou sob forte chuva e tem que se preocupar em evitar acidentes ou imprevistos para chegar na hora certa com o órgão. Se for preciso, ele liga a sirene e o giroflex do carro e anda até pelo acostamento para fugir de congestionamentos. Até aqui, o motorista diz que sempre concluiu todas as viagens que fez e que nunca se atrasou.

“Eu não me coloco em segundo plano. Eu me vejo muito ao lado dos médicos, mas com uma função distinta, fazendo meu papel. Eu nunca falo que sou inferior, porque se não tiver um bom condutor, alguém responsável, o médico não chega, tanto na ida quanto na volta. Quando o médico estiver em deslocamento, a responsabilidade é nossa. A gente procura guiar da melhor forma para garantir toda a sequência do transporte, tanto na segurança como ajudando as equipes médicas com o transporte das caixas e do material que eles vão levar para o centro cirúrgico”, detalha.

Alexandre Carlos recebe mensagens de agradecimento das famílias e dos receptores, que até pedem foto algumas vezes e falam o quanto ele foi fundamental para o transplante. Certa vez, ele foi reconhecido por um casal enquanto estava em um posto de gasolina — o homem recebeu um fígado que foi levado por Alexandre Carlos. Em 2024, o motorista vivenciou na pele um pouco da dor dos pacientes ao perder o pai e lutar contra um câncer de orofaringe (parte da garganta logo atrás da boca), o que o fez dar ainda mais valor a todos os profissionais que ajudam quem enfrenta problemas de saúde.

“Eu tive muitas dores no início, achando que eu não estaria mais aqui, que eu não estaria mais na central, mas eu venci. Nessas horas, você acaba vendo a importância de um simples gesto. Me motiva muito saber que eu fui ajudado da mesma forma que pude ajudar outras pessoas. É só agradecer e ver que, fazendo o bem, com certeza o bem retorna para você”, ressalta.

Sérgio Ricardo tem o mesmo sentimento de gratidão por ajudar o próximo. “Às vezes, as pessoas não sabem o tanto que você tem que se dedicar. Só trabalha com isso quem gosta. É deixar as diferenças de lado, e fazer o melhor pelo paciente. A gente não trabalha para a gente, a gente trabalha para o paciente. A gente faz tudo isso para chegar nele, porque a gente sabe que a doação é algo importante. E aí, você tem que dar o seu melhor. Faça não por você, mas pelo paciente. Faça o seu melhor, nem que seja pegar a caixa e botar no carro, mas faça com vontade e com carinho, para que seja bem feito. Isso é uma corrente que não pode parar.”

Em dezembro de 2024, o R7 presenciou a chegada de um coração em Brasília (DF) que veio de um doador de Goiânia (GO). O órgão foi transportado entre as duas cidades em um avião da Força Aérea Brasileira. Quando a aeronave pousou na Base Aérea de Brasília, a equipe médica e a caixa térmica com o órgão passaram para um helicóptero do Detran (Departamento de Trânsito), que levou o coração até o heliponto do Hospital das Forças Armadas.

Quem estava lá esperando a chegada do órgão era o motorista Carlos Sá Teles de Souza, 45. Depois que o helicóptero pousou, ele ajudou a equipe médica a acomodar a caixa térmica no porta-malas do carro e os levou até a recepção do hospital. O paciente que iria receber o coração já aguardava na sala de cirurgia.

Carlos presta serviços para o Instituto de Cardiologia e Transplantes do Distrito Federal, que fica no Hospital das Forças Armadas. Ele é constantemente acionado para ajudar no processo de captação, levando e buscando equipe médica e órgãos. Algumas vezes, as viagens são para estados vizinhos do DF, sobretudo Goiás e Tocantins.

Para o motorista, o mais importante é sempre fazer a viagem em segurança e chegar no tempo certo. “A sensação é de dever cumprido. Os médicos têm um carinho muito grande pela gente e respeito pelo nosso trabalho. Afinal, a gente está sempre chegando no horário e dando o nosso melhor para não ter nenhum tipo de atraso. Isso mostra a importância que a gente tem.”

Privacidade no transplante

Quando estava na 12ª semana de gestação do segundo filho, Helen Fontes, 44, ficou sabendo que o menino que ela esperava tinha uma má-formação no coração. Os exames mostraram que o feto desenvolveu apenas o lado direito do órgão. Os médicos que a atenderam durante a gravidez avisaram que essa era uma condição incompatível com a vida e que provavelmente ela teria um aborto espontâneo.

Contrariando os prognósticos, a gestação não foi interrompida. Mas antes do parto, Helen recebeu a notícia de que o filho teria que fazer um transplante para ter um novo coração. Segundo os médicos, contudo, ele só poderia fazer o procedimento quando completasse 5 anos de idade.

Mas para ter condições de fazer o transplante, o menino precisou passar por algumas intervenções paliativas para conseguir sobreviver. E a primeira aconteceu assim que Lucas Fontes nasceu, logo aos três dias de vida. Passados cinco meses, ele fez um novo procedimento, e teve até de usar um coração artificial por uma semana. Depois disso, sofreu um AVC e um infarto pulmonar e ficou apenas com o pulmão direito funcionando.

Quando completou 1 ano, Lucas fez outra cirurgia. A partir dali, o coração dele foi perdendo força aos poucos e ficou só com 13% de funcionamento, segundo a mãe. Diante do quadro, a equipe médica disse que não tinha mais solução e que Lucas teria que fazer o transplante o mais rápido possível.

Ele foi internado em dezembro de 2022 e teve que ficar respirando com a ajuda de aparelhos. Helen temia pelo tempo de espera, pois viu que algumas crianças estavam na fila há pelo menos dez meses. Mas Lucas aguardou só 17 dias até o transplante. “Todas as biópsias vieram boas, e não teve nenhum grau de rejeição. A gente tinha medo de como ia funcionar o pulmão dele com um coração saudável, mas ele se adaptou muito bem. A saturação antes do transplante ficava em 65%, 69%, mas depois passou para 97%, 99%. Ele saiu do centro cirúrgico sem estar entubado. Hoje em dia, ele não tem nenhuma sequela pulmonar ou sequela cardíaca. Parece que o coração foi feito sob medida”, diz Helen.

O coração que salvou Lucas veio da Valentina Siqueira. Um dia antes de completar 5 anos de idade, ela acordou sentindo uma forte dor na barriga e começou a vomitar. Os pais a levaram para o hospital, onde ela foi medicada, mas seguiu vomitando. A médica que atendeu Valentina receitou outro remédio, e a família voltou para casa. A menina só parou de vomitar à noite, mas na manhã seguinte estava se sentindo pior.

Os pais a levaram em outro hospital. Valentina passou por exames, e os médicos disseram que ela teria que passar por uma cirurgia para retirar o apêndice. Contudo, na hora de fazer o procedimento, eles constataram que na verdade a menina teve um quadro de volvo intestinal, que acontece quando o intestino dá um nó em si próprio. Foi preciso retirar 60 centímetros do órgão, que aparentava já estar necrosado.

Valentina teve de ser transferida para um hospital que tivesse leito de UTI, mas dentro da ambulância ela teve uma parada cardíaca. A menina até foi reanimada depois de 40 minutos, mas àquela altura o quadro dela era praticamente irreversível. Dias depois, foi constatada a morte encefálica. Quando souberam da possibilidade de doar os órgãos, os pais não pensaram duas vezes. Além do coração que hoje bate no peito do Lucas, os rins e as córneas de Valentina foram transplantados para outras crianças.

“Eu só não queria ver a Valentina na cama. Ela era uma criança que adorava correr e brincar. Ela amava viver. A partir do momento que a morte encefálica foi confirmada, a gente podia escolher entre deixar o corpo dela funcionando à base de remédios até tudo parar ou doar os órgãos. A gente não queria ter esse sofrimento. Então, a decisão foi deixá-la voar. Deixar a Valen voar para fazer morada em outros corpos e ser feliz”, conta a mãe, Rayssa Hilário, 31, lembrando do apelido da filha.

As normas legais em vigor no país sobre doação e transplante de órgãos definem que, na hipótese de doação após a morte, a identidade dos doadores não deve ser revelada para o receptor. Além disso, a família de quem doou não deve ter informações sobre quem recebeu o órgão. O objetivo dessa medida é garantir a segurança de todos os envolvidos no processo.

Apesar disso, não há nada que impeça as duas famílias de se conhecerem, e o pai de Valentina, Ewerton Siqueira, 29, foi atrás de quem recebeu os órgãos da filha e chegou até Helen. A intenção de Ewerton e Rayssa nunca foi exigir algo em troca, mas sim, conhecer qual criança teve o destino transformado pelo coração da filha deles.

“É um alento saber que a Valen ainda vive, de certa forma. Não é ela, mas ela está presente. Até hoje é muito difícil. Não teve um dia que eu não que a gente não chorou. A saudade é bem grande. A gente só se lembra dela com muito amor e gratidão. O que mais dói é não tê-la mais aqui, nunca mais ver. Nunca mais sentir, nunca mais ouvir. Mas com a doação, além de manter a memória da pessoa viva, você dá vida para outra pessoa. Tem um lado feliz disso tudo”, diz Ewerton.

As duas famílias descobriram que são quase vizinhas — Helen e Lucas moram em Taubaté, e os pais de Valentina, em São José dos Campos, cidades de São Paulo que estão separadas por aproximadamente 45 km. A primeira vez que todos se conheceram pessoalmente foi em novembro de 2023. Após o transplante, Lucas ficou internado para se recuperar de um vírus que contraiu depois do procedimento e só recebeu alta em setembro daquele ano.

“Foi muito emocionante. Eu ficava pensando: ‘Como que eu vou falar para eles que deu certo com o Lucas, sendo que eles perderam a filha? Deus foi bom, mas foi bom para mim’. Eu fiquei com muito medo, mas a Rayssa foi maravilhosa. Ela falou: ‘A Valen já tinha feito o que precisava fazer aqui e ela ainda conseguiu ajudar o Lucas’. Eu sou eternamente grata. A chance de o Lucas estar aqui hoje sem a doação de órgãos era zero. Ele não conseguiria mais um ano de vida. Não tem preço o ato do Ewerton e da Rayssa. No meio de uma perda incalculável, eles ainda conseguiram pensar no próximo”, destaca Helen.

Hoje, ela se emociona com o filho no dia a dia. Lucas tem 3 anos, mas só agora aprendeu a dar os primeiros passos. Depois de praticamente dois anos dentro de um hospital, hoje ele pode brincar como uma criança normal, principalmente com o irmão Mateus. Por causa do AVC, o lado esquerdo do corpo dele ficou comprometido. Lucas também tem dificuldade para falar. Mas aos poucos, está evoluindo. Hoje, faz fisioterapia, terapia ocupacional e fonoaudiologia. Em 2025, vai para a escola pela primeira vez.

Helen compartilha todas as conquistas de Lucas com Ewerton e Rayssa. Depois do que aconteceu, eles tiveram a Lavínia, a irmã que era tão sonhada por Valentina. Nada vai substituir a ausência da primeira filha, mas saber que ela contribuiu para mudar a história de outras crianças conforta o coração da família.

“O luto é muito doloroso, mas a gente tem que parar de ser um pouco egoísta. Se o órgão não for doado, ele vai apodrecer. Enquanto isso, tem muita gente lutando para sobreviver, e alguns não aguentam esperar. A gente não tinha noção até o que aconteceu com a Valen. Temos que dar vida para outras pessoas. A doação é muito importante”, opina Rayssa.

Quem ajudou no transporte dos órgãos da Valentina foi a motorista Fernanda Ferrarezi, 47, que presta serviços para a Secretaria Estadual de Saúde de São Paulo e para a Central Estadual de Transplantes. Além de enfrentar trânsito pesado, perder momentos de lazer com a família, ser acionada a qualquer hora, dirigir sempre alerta para não causar estragos no carro e às vezes ficar metade de um dia na estrada, para ela um dos grandes desafios é conter a emoção de um caso que envolve crianças. O da Valentina foi ainda mais marcante pelo fato de Fernanda ter uma neta com o mesmo nome.

“A gente não pode ter muito contato com a família, mas por mais que você tente se afastar, tem uma hora que você se aproxima e abraça. A gente tenta ser forte e não chegar perto, mas não é fácil. Naquele dia, ver os pais olhando os carros saindo com os órgãos da Valentina foi muito forte. Você não aguenta e acaba chorando”, confessa. “Mas é um misto de sentimentos e de emoções. Primeiro, você vê uma família triste pela perda de um ente querido, mas depois você vê a felicidade de outras pessoas esperando aquele órgão. São momentos que nos fazem dar valor à vida”, completa.

Em 2024, Fernanda transportou ao menos 60 órgãos em São Paulo. O estado liderou a quantidade de transplantes realizados no país, com pelo menos 2.731. Para a motorista, fazer parte de um processo que muda o mundo de alguém para sempre é a maior felicidade que ela poderia ter na vida. “O que eu faço é só 1% dentro disso tudo. Mas quando você gosta de fazer alguma coisa, você tira de letra. Saber que você está servindo para alguma coisa é gratificante demais. Isso só serve de combustível para que eu não desista. A grande lição que fica é do amor ao próximo.”

Prioridade pela vida

Quando um órgão doado para transplante é levado de avião até o destino do receptor, esse voo ganha prioridade em relação a outros. Ele pode decolar ou pousar antes mesmo do que o avião presidencial. Quando está perto do pouso, o avião que transporta um órgão só não tem preferência para aterrissar caso alguma aeronave esteja em situação de emergência.

As companhias aéreas comerciais e a Força Aérea Brasileira contribuem com a Central Nacional de Transplantes para fazer a distribuição dos órgãos que são ofertados pelos estados. As companhias fazem esse transporte de graça, enquanto os custos de uma viagem feita pela FAB são bancados pelo governo federal. De janeiro a julho de 2024, o gasto com as missões de transporte de órgãos feitas pela Aeronáutica foi de ao menos R$ 8,4 milhões. O número foi obtido pelo R7 via Lei de Acesso à Informação.

De janeiro a setembro de 2024, a Central Nacional de Transplantes organizou o transporte aéreo de 1.457 órgãos. A maioria dos voos foi feita pelas companhias aéreas, que levaram 1.145 órgãos, enquanto a Força Aérea Brasileira fez o deslocamento de 195. Outros 117 viajaram pelo ar em um transporte disponibilizado pelas Centrais Estaduais de Transplantes. Essas informações também foram disponibilizadas à reportagem via LAI.

“A sensação que nós temos ao transportar um órgão é que o voo deixa de ser um voo e passa a ser também uma missão. A gente tem o entendimento do tamanho da bondade daquela pessoa que doou o órgão e o tamanho da ansiedade daquela pessoa que está para receber esse órgão. Parece que a gente se envolve sentimentalmente nesse processo e tenta fazer tudo com a maior agilidade para poder entregar o quanto antes esse órgão no destino final. É um sentimento único, pois a gente está transportando um órgão que possivelmente vai salvar uma vida”, comenta o comandante da GOL Leandro Sobral, 51.

A caixa térmica com o órgão geralmente é levada pelas companhias aéreas dentro da cabine e fica em um compartimento atrás da poltrona do piloto, mas em algumas ocasiões o órgão pode ser transportado na cabine de passageiros. Antes de decolar, o piloto avisa à torre de controle que está levando um órgão, informando a sigla TROV (Transporte de Órgãos Vitais). Ao longo do voo, ele repete essa informação aos controladores de tráfego aéreo, que podem autorizar o encurtamento da rota para que o avião chegue mais rápido ao destino.

Depois que o avião pousa, a caixa térmica é a primeira a ser retirada da aeronave. Um agente do aeroporto ou uma equipe médica aguardam na porta do avião para pegar o órgão e continuar a viagem. Se houver uma conexão, a outra aeronave que vai concluir o transporte daquele órgão só decola quando a caixa térmica estiver dentro da cabine, mesmo que para isso seja necessário sair atrasado.

“Nessas horas, a pontualidade fica em segundo plano. Você realmente veste a camisa. Independentemente de a gente solicitar para o controlador a prioridade para conseguir entregar o quanto antes, você sabe que tem alguém dependendo daquele órgão, alguém que vai ser agraciado com esse presente. É uma sensação estranha, porque você está levando um órgão vital que era de outra pessoa, mas dá um conforto bem legal o fato de estar levando isso para salvar uma vida”, pontua o comandante da Azul Samir Wadih Ferreira, 41.

As companhias aéreas são as primeiras a serem acionadas pela Central Nacional de Transplantes quando surge um órgão que precisa ser transportado de avião. Caso não haja disponibilidade das empresas, a FAB é quem faz a viagem. Desde 2017, a Força Aérea Brasileira deixa pelo menos um avião disponível 24 horas todos os dias para atender às demandas da Central Nacional de Transplantes. E a ligação pode vir a qualquer momento.

“Mas tudo vale a pena quando a gente está salvando vidas. O voo de transporte de órgãos tem uma peculiaridade porque a gente sabe da importância da missão. Os tripulantes, pilotos, mecânicos e comissários envolvidos se sentem parte do processo. Eles se entregam para realizar esse tipo de missão. E vale a pena, porque levamos vida e esperança a outros”, enfatiza o comandante do 6º Esquadrão de Transporte Aéreo da FAB, tenente-coronel Daniel Rodrigues Oliveira, 41.

Tanto a Força Aérea Brasileira quanto as companhias aéreas ficam constantemente em contato com profissionais de outras instituições, sobretudo de forças de segurança, para que aquele órgão saia do aeroporto para o hospital da forma mais rápida possível. Nos casos de voos da FAB, quando o avião chega à Base Aérea Militar, um helicóptero, uma viatura, uma ambulância ou até mesmo um táxi já aguardam ali perto para dar sequência à missão.

“São diversas pessoas que têm um modo operante completamente diferente, mas o que faz com que as pessoas se mobilizem é a missão de salvar alguém. Todos se entregam de coração aberto. É como uma corrida de revezamento, e o bastão não cai. A troca sempre acontece no lugar certo e no momento adequado para a gente não perder tempo. A gente consegue observar que essa orquestra é muito bem regida, e esse som, de fato, faz com que a gente traga esperança de uma maneira muito precisa”, frisa Daniel.

Em 2014, a Associação Brasileira das Empresas Aéreas lançou o programa Asas do Bem, com o objetivo de conscientizar sobre a importância do processo de doação de órgãos e divulgar o trabalho feito pelas companhias aéreas no transporte gratuito de órgãos, tecidos, equipes médicas e materiais para transplantes. Desde então, segundo a instituição, ao menos 68,5 mil itens para transplantes foram levados pela aviação comercial brasileira.

“Fica a sensação de dever cumprido por você ter feito parte de um processo tão importante para a vida de duas pessoas. E também tem a sensação de gratidão por você ter sido escolhido para aquele momento, para aquele voo, para fazer o transporte desse pedacinho de um ser humano que é tão valioso e tão importante para a vida de outra pessoa”, reconhece Leandro.

“A maior lição que a gente tira disso aí, sem dúvidas, é a fragilidade do ser humano. A gente lembra que está transportando uma parte vital de uma pessoa que infelizmente já se foi, mas ao mesmo tempo você está feliz, porque aquela parte está indo salvar a vida de outra pessoa. No mesmo ambiente, ali na cabine, vem um mix de tristeza — por alguém ter doado aquele órgão —, e felicidade — por alguém que vai receber. Eu não consigo definir se é uma felicidade ou uma tristeza por transportar aquele órgão, mas eu penso que a gente tem que pegar o lado positivo, porque aquele órgão está indo salvar a vida de alguém”, completa Samir.

Transportando mais que órgãos

A logística para viabilizar um transplante por vezes envolve não apenas o transporte do órgão, mas também de quem vai recebê-lo. Foi o caso do Carlos Humberto Prado Vilarinho Filho, ou Cafil, apelido que ele mesmo inventou.

Quando Cafil completou 1 ano de idade, a família ficou sabendo que ele precisaria de um transplante de rim por causa de uma má-formação conhecida como refluxo bilateral, que faz com que a urina da bexiga volte para o rim.

O menino foi liberado para a cirurgia só quando estava pesando mais de 10 kg, o que aconteceu em 2020, quando ele tinha 4 anos. A mãe, Amanda Graciano Duarte, decidiu doar um dos próprios rins para o filho. A família morava em Uberlândia (MG), mas o transplante aconteceria em São Paulo (SP), onde era feito o acompanhamento médico do Cafil.

A cirurgia seria em março daquele ano, mas a confirmação das primeiras mortes por Covid-19 forçou o cancelamento do procedimento. Cafil e Amanda tiveram que esperar mais alguns meses. Enquanto isso, o menino passava por diálise peritoneal, um tratamento contra insuficiência renal em que o peritônio, uma membrana do corpo humano, é usado como filtro para remover as toxinas e o excesso de líquido do corpo.

Mãe de primeira viagem, Amanda fazia o que fosse pelo filho e tinha o maior cuidado do mundo para que ele sofresse o menos possível por causa do problema que tinha. Os dois, no entanto, tiveram que se despedir de forma precoce. Em agosto de 2020, Amanda teve um mal súbito após um AVC. Foi levada ao hospital, mas teve morte encefálica. Ela tinha 30 anos de idade.

Com a morte, o rim que ela tinha prometido doar para o filho não poderia mais ir para ele. Como acontece em toda doação após a morte, o órgão seria destinado a alguém que já estivesse na fila de espera da Central Estadual de Transplantes, não sendo possível escolher quem seria o receptor. Mas a família recorreu à Justiça, que autorizou Cafil a receber o rim da mãe.

Em meio ao luto, a mãe de Amanda e avó de Cafil, Rosa Helena Duarte, 58, foi forte o suficiente para honrar o desejo da filha e, enfim, tirar o neto daquela condição. Rosa não conseguiu acompanhar o velório de Amanda, pois viajou a São Paulo com Cafil para ele fazer o transplante. Os dois foram em um avião da Polícia Militar de Minas Gerais, levando também a caixa térmica com o rim.

“Eu não tinha outra opção. A minha opção era salvar a criança. Naquele momento, tudo passou a girar em torno dele”, lembra Rosa. Depois do transplante, Cafil teve de ficar mais sete meses em São Paulo, até ficar curado de uma meningite que surgiu por rejeição do corpo dele ao órgão.

Amanda sempre disse para a mãe que queria ser doadora de órgãos, e Rosa respeitou o desejo da filha. Além do rim que foi transplantado para o Cafil, Amanda doou o coração, o fígado, as córneas e o outro rim. Todos encontraram receptores. “Foram cinco vidas salvas, contando com o Cafil. Um que hoje está enxergando, outro que está com um rim, outro que recebeu o fígado, e outro que recebeu o coração. Quando a gente doa, a gente está salvando. E eu tenho certeza que a minha filha está feliz. Era a vontade dela: salvar vidas. Se fosse hoje que acontecesse tudo isso, eu doaria de novo”, destaca Rosa.

Ela espera um dia conhecer a pessoa que recebeu o coração de Amanda. Rosa sabe apenas que o órgão foi implantado no corpo de um homem, que à época da cirurgia tinha 58 anos. Enquanto isso não acontece, ela fica feliz por ver Cafil, hoje com 8 anos, levando uma vida normal. Ele ainda precisa de acompanhamento médico para monitorar o funcionamento do rim e tem que seguir uma alimentação mais saudável para não ter complicações renais. E a avó tem um papel fundamental para que isso ocorra: é a Rosa que prepara a comida do neto e que o leva em todas as consultas.

“Enquanto eu tiver vida, eu quero fazer de tudo para cuidar da melhor forma possível para a gente poder manter esse pedacinho da mamãe que está ali dentro. Eu cuido dele como se também estivesse cuidando dela”, afirma. “Dói muito saber que a minha filha não está aqui, mas em momento nenhum eu fiquei triste ou brava com Deus. Eu sou outra pessoa depois de tudo isso. Eu tenho mais empatia, eu me coloco no lugar do outro. A lição que eu tirei foi que nós não estamos aqui de passagem. Tudo o que a gente puder fazer em prol do outro, a gente precisa fazer”, completa.

Cafil ainda guarda lembranças da mãe e diz sentir saudades do seu jeito engraçado, carinhoso e amoroso. Mas ele agradece por todo o cuidado que recebe da avó, que segundo ele veio para “iluminar as trevas” e é sinônimo de amor e respeito. O grande sonho do menino é virar nefrologista no futuro, médico especialista em doenças renais. “Quero cuidar das pessoas que passaram por tudo isso que eu já passei”, garante.

Em 2024, quem ganhou um novo rim foi Benício Lammel Ferreira, 3. Devido a uma má-formação desenvolvida ainda durante a gestação, ele nasceu com menos de 15% dos rins funcionando adequadamente. Os pais foram avisados já naquele momento de que seria necessário um transplante, mas Benício teria primeiro que chegar ao peso mínimo de 10 kg para fazer a cirurgia.

Até isso acontecer, ele também fez diálise peritoneal. Em determinado momento, o tratamento parou de surtir efeito, e Benício foi submetido a hemodiálise. A insuficiência renal dificultou o processo de ganho de peso, pois ele não tinha vontade de comer pela falta de apetite.

A condição de saúde do Benício fez com que os pais dele mudassem toda a rotina em prol do bem-estar do filho. A família saiu do Paraná para morar em Blumenau (SC) para garantir que ele tivesse o melhor tratamento. “A gente tinha muito medo. Tinha muita incerteza. Existia um temor real de não trazê-lo para casa. E a gente lidou com isso tentando buscar o que era possível para ter certeza que ele ia receber tudo o que precisasse e que estaria o mais bem assistido que pudesse. Se porventura alguma coisa não desse certo, pelo menos a gente ia saber que fez tudo o que podia”, conta a mãe, Paola Lammel, 35.

Benício foi liberado para fazer o transplante em maio de 2024, mas o rim que salvaria a vida dele só apareceu em outubro. A cirurgia seria feita em Curitiba (PR), que ao lado de Porto Alegre (RS) é uma das únicas cidades da região Sul que fazem transplante pediátrico. A família faria a viagem até lá com o próprio carro. Para evitar contratempos, eles foram aconselhados a pedir escolta policial. Mas quando chegaram a um posto da Polícia Rodoviária Federal, tiveram uma surpresa: a corporação ofereceu um helicóptero para fazer o deslocamento. Assim, uma viagem que levaria pelo menos 3 horas foi feita em 20 minutos.

“Quando a gente lida com uma situação difícil, tem a impressão que não vai encontrar gente disposta a te ajudar. Mas no meu caminho só apareceu gente muito boa, que faz muito mais do que trabalhar com excelência e competência. Gente que está disposta a colaborar, que está fazendo aquilo com amor. E quando se trata de saúde, isso é mais especial ainda, porque não depende de mim cuidar do meu filho. Eu precisava dessas pessoas, e ter recebido isso de uma maneira tão carinhosa e dedicada, com tanta empatia, foi impagável”, garante Paola.

Benício reagiu bem ao transplante. Hoje, ele está mais disposto e nem aparenta ser uma criança que teve de lidar com tantas dificuldades tão cedo. Para a mãe, fica o agradecimento a todos que o ajudaram nesse processo, sobretudo à família que decidiu doar o rim.

“A gente vive uma alegria imensa com o recebimento do transplante, mas não deixa nunca de lembrar e de pensar nessa família e nessa criança, a estrelinha que fez esse milagre acontecer na vida do Benício. Espero que, quando eles se encontrarem com uma criança transplantada e conhecerem a história dela, que isso sirva de conforto para eles. Porque, de alguma maneira, a criança deles tem a oportunidade de viver de uma maneira diferente agora.”

Antes de fazer o transplante, Benício passou por tratamento ao lado do João Lucas Belaus, 8. Ele nasceu com síndrome de Joubert, condição genética rara que afeta o cérebro e causa dificuldades motoras. Devido à síndrome, João Lucas teve falência renal e precisou de um transplante.

Ele entrou na fila em abril de 2024. Assim como aconteceu com Benício, um novo rim apareceu para João Lucas em outubro. O transplante seria feito em Porto Alegre, e a família estava em casa, em Indaial (SC), quando recebeu a ligação. João Lucas e os pais foram de carro até Criciúma (SC), a aproximadamente 350 km de distância, escoltados pela polícia. De lá, seriam levados em um helicóptero da Secretaria de Saúde de Santa Catarina para a capital gaúcha, mas a viagem foi cancelada de última hora. Os pais foram avisados que outra criança receberia aquele rim.

Dessa forma, a família voltou para casa e depois levou João Lucas para uma nova sessão de hemodiálise, em Blumenau. Quando eles chegaram na clínica, receberam uma nova ligação, e os pais foram informados que o órgão voltaria a ser de João Lucas. Para agilizar o deslocamento da família, a clínica pediu ajuda ao SAMU (Serviço de Atendimento Móvel de Urgência), que levou João Lucas e os pais até o aeroporto de Blumenau.

De lá, o menino e a mãe, Nara de Moura, 43, viajaram ao Rio Grande do Sul em um avião Arcanjo, usado pelo Batalhão de Operações Aéreas do Corpo de Bombeiros Militar de SC em parceria com o SAMU Aeromédico. O pai, Lucas Belaus, 46, viajou de carro até o hospital onde seria feito o transplante, pois não havia espaço no avião para ele.

A aeronave pousou em Canoas, visto que o aeroporto de Porto Alegre ainda não estava funcionando totalmente em função das enchentes. De lá, João Lucas e Nara foram levados em uma ambulância até a capital do Rio Grande do Sul. O transplante dele foi um sucesso, e João Lucas já está em casa.

Para os pais, o sentimento é de gratidão, em especial por todos os profissionais que se mobilizaram para permitir que o filho chegasse o mais rápido possível no hospital.

“O alívio foi tão grande de saber que o transplante ia acontecer que o meu foco era fazer com que meu filho chegasse a tempo lá. Eu me senti seguro, porque vi que ele estava em boas mãos, com uma equipe extremamente profissional e confiável. Então, fiquei aliviado em ver que ele estava indo para o destino que nós mais queríamos. Eu me senti bem pelo fato de saber que ele estava indo, e eu poderia chegar depois. Ele, não. Ele teria que estar lá o mais rápido possível”, lembra Lucas.

“Tenho muito amor e gratidão pela vida deles. Todos foram extremamente atenciosos. Queria ressaltar a importância desse trabalho, que assim como beneficiou meu filho, pode beneficiar inúmeras outras pessoas. Hoje, eles fazem parte das nossas vidas”, completa Nara.

Apesar das dificuldades que marcaram o processo, Lucas diz que os esforços que a família fez não foram em vão. “A gente sempre buscou o lado bom de tudo. As pessoas falavam: ‘Que pena, ele vai ter que fazer um transplante’. E eu respondia: ‘Que bom que existe essa possibilidade. Se não existisse, eu perderia meu filho’. Com o João, nós nos tornamos pessoas melhores e passamos a olhar o próximo de outra forma. A gente ficou algumas noites sem dormir, teve alguns momentos de fraqueza, mas tudo valeu a pena. Tudo foi feito para ele.”

Os empecilhos para a doação e o transplante

Desde 2001, o país vê crescer a quantidade de pessoas que viram doadoras. No início do século, o país tinha cinco doadores efetivos a cada 1 milhão de pessoas. Em 2023, essa estatística subiu para 20 doadores efetivos por 1 milhão. A taxa de potenciais doadores que viraram doadores efetivos passou de 21,5% em 2001 para 29,2% em 2023.

Mas o Brasil ainda lida com alguns percalços. Há doações que não são concretizadas por contraindicação médica e pelas condições do doador, do receptor ou do órgão, mas o maior motivo é a recusa da família em autorizar a doação dos órgãos. O Ministério da Saúde começou a registrar essa informação em 2013, e desde então quatro de cada dez famílias que são entrevistadas após a morte encefálica de um parente não permitem que os órgãos sejam doados.

O Ministério da Saúde diz que a conscientização sobre a importância da doação de órgãos é uma das melhores formas de reverter essa situação. A pasta também recomenda que cada pessoa converse com a sua família ainda em vida sobre a vontade de se tornar doadora após a morte.

“A melhor maneira de garantir efetivamente que a vontade do doador seja respeitada é fazer com que a família saiba sobre o desejo de doar do parente falecido. Na maioria das vezes os familiares atendem a esse desejo, por isso a informação e o diálogo são absolutamente fundamentais, essenciais e necessários”, diz a pasta. “A doação consentida é a modalidade para a doação que mais se adapta à realidade brasileira. A previsão legal concede maior segurança aos envolvidos, tanto para o doador quanto para o receptor e para os serviços de transplantes”, acrescenta o ministério.

Uma pessoa que quer doar órgãos não precisa registrar isso em cartório. Contudo, o Colégio Notarial do Brasil lançou em 2024 a Autorização Eletrônica de Doação de Órgãos, documento que pode ser preenchido pela internet por qualquer um que tenha vontade de se tornar doador. Essa informação fica disponível para o Sistema Nacional de Transplantes e para as Centrais Estaduais de Transplantes e pode ajudar os profissionais de saúde no momento da entrevista familiar a comprovar o desejo daquela pessoa. A emissão do documento é gratuita.

Enfermeira-coordenadora de uma Organização de Procura de Órgãos na cidade de São Paulo, Layse Beneli, 37, trabalha no acolhimento das famílias de potenciais doadores assim que a morte encefálica é confirmada. Ela diz que é difícil esperar que os parentes sejam racionais em um momento de luto, mas destaca que o objetivo é confortar essas pessoas e oferecer o máximo de informações sobre a possibilidade de doação.

“As famílias precisam ser devidamente acolhidas e amparadas para que consigam pensar em como essa ação vai mudar a vida do próximo. De modo geral, as famílias têm um conhecimento parcial da possibilidade de doação. No momento da entrevista, além de a gente orientar, a gente também conversa com essa família para ela ressignificar essa perda, dar um novo sentido para o luto que ela está vivendo, transformar esse luto em esperança de uma vida nova. E a família vai ver que, talvez, aquela perda não foi em vão, que ela pode salvar outra vida por meio da doação”, observa Layse.

Para os profissionais de saúde, é fundamental que as pessoas entendam que qualquer um pode precisar de um transplante um dia. “A doença não escolhe idade, sexo, não escolhe nada. Então, todo mundo está suscetível a um dia desenvolver uma doença que leve ao transplante. Temos que ter muita empatia. A fila de espera no Brasil só está aumentando, e a gente precisa que tenha cada vez mais doações para salvar mais vidas”, diz o supervisor do programa de transplante hepático do Instituto de Cardiologia e Transplantes do Distrito Federal, Rafael Filgueiras, 28.

“A causa da doação dos órgãos precisa, se possível, ser inserida na educação. É um tema que precisa ser mais difundido, porque muitas vezes um transplante é a única alternativa para pacientes portadores de alguma doença terminal. E a realização desse transplante só é acessível pela doação, que possibilita o restabelecimento da saúde do indivíduo, a melhora da qualidade de vida dele e que sonhos e planos de famílias inteiras sejam retomados. E isso também é importante para quem doa, porque traz conforto para a família e sensação de esperança, dever cumprido, satisfação e utilidade. Por fim, esse processo reduz fila de transplante, taxa de ocupação de leitos e custos com gastos públicos”, completa Layse.

Em uma menor proporção, problemas de logística também são um fator que atrapalha a efetivação de algumas doações, e pelo menos desde 2020 há um crescimento na quantidade absoluta de órgãos que não são enviados de um estado a outro por causa disso. Via Lei de Acesso à Informação, o R7 constatou que, de janeiro a agosto de 2024, 201 dos 1.985 órgãos oferecidos pela Central Nacional de Transplantes foram recusados pelos estados por problemas logísticos, o equivalente a 10% do total. Esse foi o maior número desde 2017.

O transporte pode não ocorrer por vários motivos, como o tempo de duração do deslocamento ser maior que o tempo de isquemia do órgão, aeroporto sem condições para pousos e decolagens, condições meteorológicas impróprias, indisponibilidade de voos comerciais para o local onde se encontra o doador ou o receptor, indisponibilidade de aeronave da FAB, tempo de viagem que excede o tempo de fadiga da tripulação envolvida e impossibilidade de atendimento do horário previsto para a captação.

O Ministério da Saúde afirma que, embora as recusas por motivos logísticos representem um percentual relativamente baixo dentre os motivos registrados, adota estratégias para mitigar esses desafios e garantir a efetividade do Sistema Nacional de Transplantes nos próximos anos.

“Uma das principais medidas é a existência do Termo de Cooperação firmado entre o Ministério da Saúde e as companhias aéreas comerciais, que assegura o transporte gratuito de equipes de transplante e órgãos destinados a transplantes em todo o território nacional. Além disso, o Ministério conta com o apoio estratégico da Força Aérea Brasileira, que realiza o transporte de órgãos e equipes em aeronaves próprias. Nesse caso, os custos são cobertos integralmente pelo governo federal, por meio do orçamento destinado ao Ministério da Saúde, demonstrando o compromisso em garantir celeridade e segurança no processo logístico”, diz o ministério, que acrescenta que o Termo de Cooperação é revisado periodicamente “com o intuito de identificar oportunidades de aprimoramento e expansão das parcerias”.

Um salva oito

Até oito vidas podem ser salvas com os órgãos de um único doador, visto que coração, pulmões, rins, fígado, pâncreas e intestino podem ser transplantados. Além dos órgãos vitais, podem ser doados córneas, pele, ossos, cartilagens e outros tecidos.

Membro do Departamento de Transplante de Coração da Associação Brasileira de Transplante de Órgãos, o cirurgião Ronaldo Honorato diz que a doação de órgãos é um ato genuíno de amor ao próximo.

“O próprio termo diz. Doar. É uma entrega que você faz. Você não sabe a quem, mas você doa. A doação de órgãos é isso. Uma vez declarada a morte encefálica, não há como voltar atrás. E a biologia é inexorável: os órgãos vão deteriorar. Então, já que houve a infelicidade da perda de um ente querido, que essa perda seja ressignificada. E a forma que você tem de ressignificar essa perda inesperada, muitas vezes, é por meio da doação. É como se essa pessoa reciclasse a vida. De um único doador, podemos trazer uma segunda chance para várias pessoas”, salienta.

Quem sabe disso muito bem é a Claudia Leite Alves, 46. Quando tinha 19 anos, ela descobriu que tinha hepatite autoimune, uma doença crônica em que o sistema imunológico ataca as células do fígado, causando inflamação e danos ao órgão. Essa enfermidade a levou a desenvolver cirrose hepática, que acontece quando o fígado fica cheio de cicatrizes por causa de danos contínuos, o que dificulta o funcionamento do órgão.

Ela fez tratamento com remédios até os 35 anos, quando os médicos concluíram que Claudia precisaria de um transplante por causa da gravidade do caso. Passados quatro anos da cirurgia, contudo, houve rejeição do corpo ao novo órgão, e Claudia teve de ser submetida a um novo transplante. Depois de seis anos da segunda cirurgia, outra vez o fígado acabou sendo rejeitado, e Claudia precisou passar por um terceiro transplante.

Cada transplante teve a sua particularidade. No primeiro, ela quase não conseguiu ser avisada pela equipe médica. Claudia estava em casa naquele dia, em Águas Lindas de Goiás (GO), mas não recebeu as ligações do hospital por falta de sinal telefônico. O jeito que a equipe médica encontrou foi acionar a Polícia Militar, que foi até a casa de Claudia para buscá-la.

“O policial falou: ‘Mantenha a calma. É a polícia, mas mantenha a calma. A gente traz notícia boa e notícia ruim. No seu caso, é notícia boa. Falaram para a gente vir buscar a senhora para o seu transplante’. Eu não sabia se eu chorava, se eu pulava, se eu ria. Foi uma emoção que não dá para explicar. Cheguei no hospital, e estava todo mundo eufórico me esperando. Foi uma história muito emocionante”, resume Claudia.

No processo de recuperação dos três transplantes, Claudia passou por momentos de muita dificuldade. Antes de fazer a cirurgia para trocar de fígado pela terceira vez, ela usou um dreno biliar por pouco mais de um ano para remover o excesso de líquido acumulado no fígado. Claudia ainda ouviu da equipe médica que ela tinha apenas 30% de chances de sobreviver a um novo procedimento.

Depois do último transplante, que aconteceu em novembro de 2023, ela teve parada cardíaca, pneumonia e precisou ser submetida a uma traqueostomia (cirurgia em que é feita uma abertura na traqueia para que a pessoa consiga respirar) devido a uma broncoaspiração (que acontece quando algo que deveria ir para o estômago acaba entrando no pulmão por engano). Além disso, Claudia ficou em coma por três meses.

Ela diz que, nesse período, conseguia ouvir todas as pessoas que iam visitá-la no hospital. “Eu ouvia as pessoas chorando, falando que eu tinha morrido. E eu tentava falar: ‘Gente, eu estou viva, eu não vou morrer. Eu estou aqui’. Eu queria falar que eu estava bem para que todos parassem de chorar. Mas eu não tinha força para acordar”, lembra Claudia. “Hoje estou aqui, firme e forte, graças a Deus. Passei por umas que não são para qualquer pessoa. É uma história muito bonita”, completa.

Quando Claudia acordou do coma, a primeira pessoa que viu foi o marido. Ela tentou falar com ele, mas em função da traqueostomia não conseguiu. Claudia teve de reaprender a falar e precisou de fisioterapia para conseguir caminhar novamente. Hoje, anda com a ajuda de uma bengala.

Ao fazer um resumo da própria história, Claudia espera que o exemplo dela sirva para conscientizar mais pessoas sobre a importância da doação de órgãos. “Eu precisei de três vidas para estar aqui hoje. As famílias precisam entender que é na dor que a gente salva outras vidas. Infelizmente, é na hora de uma perda muito grande de um ente querido que a gente dá vida a outra pessoa. Que as famílias sejam fortes nessa hora para pensar no próximo, pois a vida de um ente querido pode continuar em outra pessoa.”

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