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Notícias|Clarissa Lemgruber, do R7, em Brasília

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O cartão de crédito deixou de ser um meio de pagamento e virou parte do orçamento mensal de milhões de famílias brasileiras. Sem renda estável, sem alternativas mais baratas e diante dos juros mais altos do mundo, pessoas de diferentes regiões e classes sociais recorrem ao crédito para fechar o mês — e acabam presas a dívidas que crescem muito mais rápido do que a capacidade de pagamento. Especialistas ouvidos pelo R7 apontam que esse sistema não apenas endivida, mas aprofunda desigualdades e transforma o crédito em um mecanismo de exclusão financeira.

Dados da Pesquisa de Endividamento e Inadimplência do Consumidor, divulgada pela CNC (Confederação Nacional do Comércio), mostram que oito em cada dez famílias brasileiras estavam endividadas em 2024, o maior patamar da série histórica. Entre as de menor renda, o índice chega a 90% em algumas capitais. A modalidade mais comum é a mesma em todo o país: o crédito vinculado ao cartão.


Os números mostram ainda que famílias com contas em atraso levam, em média, 65 dias para regularizar pagamentos — e o tempo médio de comprometimento com as dívidas chega a 7,2 meses. O levantamento também aponta que o percentual de famílias que usam o cartão para despesas básicas (alimentação, transporte e contas domésticas) alcançou um dos maiores níveis dos últimos anos.

Por que o cartão domina o endividamento?

Segundo o economista Flávio Ataliba, do Ibre (Instituto Brasileiro de Economia) da FGV (Fundação Getulio Vargas), três fatores explicam por que o cartão domina o endividamento no Brasil: acesso fácil, parcelamento sem juros e atalhos mentais que reduzem a percepção do custo real.


“Para famílias com renda curta e instável, o cartão funciona como um mecanismo informal de liquidez. Ele vira parte do orçamento”, afirma. Para esse grupo, diz o pesquisador, o limite pré-aprovado substitui o seguro que não existe. “O cartão preenche lacunas estruturais de um mercado que não oferece crédito barato para quem mais precisa.”

Ataliba afirma que o parcelamento sem juros cria uma lógica de decisão que empurra o consumidor a olhar apenas o valor da parcela. “As famílias não calculam o custo total. Elas observam se a parcela cabe no mês. Isso favorece o acúmulo silencioso do estoque da dívida.”


Outro mecanismo é o adiamento da dor do pagamento, que separa o ato de consumir do ato de pagar. “Para quem está com o orçamento pressionado, o alívio imediato pesa mais do que a preocupação futura com a dívida.”

O pesquisador lembra que, em 2024, o rotativo do cartão ultrapassou 400% ao ano, e que basta uma oscilação na renda para empurrar a família para essa modalidade.

“Basta um mês ruim para entrar no rotativo. E, uma vez dentro, mesmo pagamentos altos não reduzem a dívida. A pessoa sente que está correndo sem sair do lugar.”

Ele lista os três fatores de travamento:

  • juros extremamente altos;
  • otimismo irrealista sobre a renda futura;
  • ilusão do pagamento mínimo, percebido como “orientação implícita” do banco.

O resultado é um sistema que, segundo ele, “empurra para a modalidade mais cara e oferece pouca alternativa para sair dela”.

A pressão aparece imediatamente no consumo básico. “Crédito caro funciona como um imposto privado sobre os mais pobres. Cada real destinado ao juro é retirado de alimentação, transporte e energia.”

A espiral da dívida

A trajetória do jornalista Luís Fernando*, 50, mostra como dívidas crescem mesmo entre pessoas com salário fixo. Em 2021, ele vivia um dos períodos mais tranquilos da vida financeira: emprego formal, renda extra e despesas divididas em casa. O dinheiro sobrava no fim do mês.

O cenário mudou quando ele perdeu a renda complementar. “Faltou um pedaço do orçamento. Comecei a fazer empréstimos achando que estava resolvendo. O problema é que o empréstimo resolve na hora e te prende depois”, diz.

Sem dar conta dos saldos, ele passou a usar cheque especial. “Quando você vive no cheque especial, a dívida não acaba, ela cresce.”

A partir daí, o cartão virou ferramenta de sobrevivência. “Eu usava para pagar conta, comprar comida. Não era consumo, era sobrevivência.”

Com choques sucessivos — conserto de carro, atrasos acumulados, renegociações parciais — a dívida de R$ 5.000 se transformou em mais de R$ 50 mil.

“Se eu fizer outro empréstimo, vou viver só para pagar banco. Não sobra para comer ou para o aluguel.”

Ele tentou portabilidade e acordos, mas sem resultados estruturais. “A dívida empurra a gente para decisões ruins, tomadas no desespero.”

Endividamento que atravessa gerações

Sob uma lona montada perto do Banco Central, em Brasília, o comerciante Carlos*, 50, atende clientes há quase duas décadas em um quiosque de churrasquinho que sustenta boa parte da família. Ali trabalham quatro parentes, entre eles a filha Stefani*, 25, e a nora Patrícia*, 31. Todas as gerações convivem com dívidas.

Carlos relata que já não sabe quando a bola de neve começou. “A gente vende o jantar para comprar o almoço. Você nunca consegue se reerguer.”

A renda inconstante do pequeno comércio empurra a família para juros altos. “Quando você não tem fundo para cobrir gastos, como compra mercadoria? O jeito é pedir para o banco.”

Ele evita até calcular o montante devido. “Se eu somar, eu desabo. Prefiro nem saber.”

A falta de fôlego financeiro atravessa a rotina. “A gente trabalha o ano inteiro esperando descansar 10 dias. Quando chega dezembro, percebe que não tem recurso nem para isso.”

Quando o erro custa caro

A nora, Patrícia, conta que o marido tentava complementar renda construindo muros para moradias do Minha Casa, Minha Vida. Um dos muros caiu após erro na execução. Sem fundo de caixa, o casal assumiu o prejuízo. Vieram atrasos de pedreiros, retrabalho, mais custos.

“Virou uma bola de neve. Pegamos cartão emprestado, empréstimo, até dinheiro com agiota.”

Depois de muita renegociação e ajuda de terceiros, quitaram as dívidas consideradas urgentes. “O perigoso já não tem mais. Hoje estamos com 90% das dívidas quitadas, mas ainda restam uns R$ 3.000 no cartão.”

Impactos da dívida no dia a dia

Stefani convive com dívidas desde que fez o primeiro cartão, aos 18 anos. “Eu gastava mais do que ganhava. Não fazia ideia da dimensão dos juros. Acabou virando uma bola de neve.”

Ela descreve os efeitos negativos das dívidas no bem-estar. “Atrapalha diretamente o sono, a rotina. A cabeça fica cheia, pensando em como pagar.”

Já tentou negociar, mas não conseguiu organizar tantos débitos simultâneos. “Quando você tem um limite maior do que recebe, uma hora você se embola.”

A engrenagem estrutural do rotativo

Para Hugo Garbe, doutor em economia e professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie, o rotativo do cartão de crédito no Brasil é resultado de fatores estruturais que encarecem o crédito muito além do padrão internacional.

“O rotativo brasileiro resulta da combinação de spreads elevados, inadimplência estruturalmente alta, forte assimetria de informação e ineficiências operacionais do sistema financeiro”, afirma.

Segundo ele, o spread — diferença entre o que o banco paga para captar recursos e o que cobra do cliente — incorpora tributos, compulsórios e baixa concorrência, o que permite repassar custos quase integralmente ao consumidor.

Outro elemento é o “risco de liquidação”. Como o banco não controla o gasto nem o uso do limite, financia pagamentos futuros sem visibilidade plena do risco. “O resultado é uma taxa muito acima do padrão internacional, onde há maior competição, menor inadimplência e regras mais rígidas para cartões.”

Garbe explica que famílias de menor renda sofrem mais por lidarem com renda volátil e não terem garantias. “Há fatores estruturais relevantes: baixa concorrência, pouca oferta de crédito alternativo, alto custo regulatório e um mercado em que o perfil de renda baixa se concentra em produtos sem garantias.”

Ele afirma ainda que o design dos produtos estimula o uso contínuo. “Rotativo e crédito pré-aprovado têm altíssimo grau de conveniência e baixíssimo atrito. O cliente não negocia taxa, prazo ou risco, apenas utiliza.” O pagamento mínimo, acrescenta, cria a ilusão de alívio e transforma o endividamento em estado permanente.

Para Lauro Gonzalez, professor da FGV Eaesp e coordenador do FGVcemif, o endividamento caro é produto de uma combinação que se reforça mutuamente: renda curta, juros altos e escassez de alternativas.

“O problema não é apenas o nível do endividamento, mas a sua estrutura. Quando o único instrumento acessível é caro, o atraso vira quase inevitável.”

Ele explica que, mesmo após renegociações, muitas famílias continuam presas ao mesmo ciclo.

“Enquanto o crédito de curto prazo for a porta de entrada mais acessível, veremos ciclos de endividamento que se repetem e se aprofundam.”

*Nomes fictícios

  • Diretor Editorial e Projetos Especiais: Thiago Contreira
  • Diretora de Conteúdo Digital e Transmídia: Bia Cioffi
  • Vice-presidente de Jornalismo: Antonio Guerreiro
  • Diretor de Jornalismo Record Brasília: Roberto Munhoz
  • Gerente de Jornalismo Multiplataforma: Leonardo Meireles
  • Reportagem: Clarissa Lemgruber
  • Edição: Augusto Fernandes, Bruna Lima e Letícia de Souza
  • Arte: Luce Costa
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