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Especial bonecas Ritxoko 1 Luce Costa/Arte R7

Notícias|Victoria Lacerda, do R7, em Brasília

Feitas com argila retirada das margens do Rio Araguaia, misturada com água e cinzas, as bonecas Ritxoko atravessaram o tempo, os ciclos da infância e as fronteiras geográficas. Tornaram-se símbolo da cultura Karajá — povo indígena que habita a Ilha do Bananal, no Tocantins —, resistência feminina e fonte de renda e sustento nas aldeias.

Queimadas em fogo baixo, as bonecas ganham colorações que variam entre o vermelho-alaranjado e o negro, dependendo do tempo de queima e dos elementos da mistura. Os grafismos que decoram as superfícies não são apenas adornos: representam a pintura corporal Karajá, feita tradicionalmente com urucum (vermelho) e com a tinta escura extraída da casca da árvore ixarurina.


As Ritxoko — nome no idioma Inyrybè, falado pelos Karajá — surgiram originalmente como brinquedos infantis, modelados por mulheres para suas filhas. As primeiras versões eram figuras pequenas e simples, produzidas com sobras de barro e moldadas apenas com as mãos, segundo explica a antropóloga Rosani Moreira Leitão, doutora pela UnB (Universidade de Brasília) e pesquisadora da cultura Karajá há mais de duas décadas.

“Até os anos 1940, as bonecas eram miniaturas sem queima, moldadas para brincar, sem intenção de durar”, explica Rosani. “Mas com a chegada de visitantes ilustres, como Getúlio Vargas, e a construção do ‘Alvoradinha’ — uma espécie de casa de veraneio do Palácio do Planalto na Ilha do Bananal —, elas passaram a ser feitas com mais cuidado, com queima, pintura e formas mais realistas. O comércio não esvaziou seu sentido cultural. Pelo contrário, ampliou as formas de representação.”


Hoje, cada boneca carrega história. Algumas retratam cenas do cotidiano — mulheres ralando mandioca, homens pescando, crianças brincando. Outras dão forma a seres sobrenaturais da cosmologia Karajá, que divide o mundo entre céu, terra e água. Personagens como o Lateni, espírito bravo das águas, ou a mulher que se casou com um veado encantado, saem do plano oral para o plano visual pelas mãos das ceramistas.

“Cada boneca é uma narrativa. Quando uma ceramista modela o Lateni ou a mulher-veadinho, ela está contando uma história do povo Iny. É uma pedagogia silenciosa”, diz Rosani.


“Aprendi no silêncio”: o saber que passa de mão em mão

No mundo Karajá, conhecimento não se ensina no quadro negro. Ele se transmite com o corpo, no tempo do olhar, na convivência entre gerações. O silêncio é ferramenta de aprendizado — e o barro, um livro vivo. As mãos que modelam as Ritxoko não aprendem com manuais, mas sim no compasso das conversas, da observação e da repetição paciente.

Foi assim que Kaimoti Kamayurá, de 68 anos, aprendeu. Ainda menina, sentava-se quieta no chão batido da aldeia, perto da cunhada. Não era necessário que alguém lhe dissesse o que fazer. Bastava ver. Bastava estar. “Minha cunhada moldava o barro como massa de pão, e eu ficava quietinha, prestando atenção”, lembra. A primeira boneca que fez saiu torta, sem pés nem braços. Mas foi guardada com carinho — e elogiada pela mãe. Foi o começo.

Hoje, Kaimoti produz mais de 100 peças por mês, entre bonecas, animais da fauna local, potes e figuras humanas. “Ninguém me ensinou com explicações. Aprendi vendo, no tempo da convivência”, repete, como se resumisse toda uma pedagogia do fazer. Ela participa de feiras em Goiás, Tocantins e Distrito Federal, mas boa parte das vendas vem por encomenda. “Meu neto tira foto, posta no celular e fala com o povo. Eu só faço. Não entendo nada de telefone, mas eles me ajudam”, diz, com simplicidade.

O barro, que antes era passatempo, virou sustento. “Comprei freezer, máquina de lavar, televisão. Pago energia, compro comida. Tudo vem das bonecas. É o barro que me sustenta.”

Ao lado dela, em outra aldeia da Ilha do Bananal, Seweria Karajá, de 51 anos, também encontrou nas mãos um elo com suas ancestrais. A lembrança da mãe moldando figuras delicadas continua viva. “Ela fazia bonecas pequenas, com colar, brinco, peninha. Eu queria fazer igual.”

A primeira tentativa foi tímida, feita com receio. Mas a mãe viu e disse: “Está bonita. Você vai aprender mais”. Era o incentivo necessário.

Desde então, Seweria não parou. Suas bonecas retratam cenas da vida comunitária: mães com filhos no colo, mulheres dançando, crianças brincando. Também molda animais sagrados para o povo Karajá, como a anta, a arara e a sucuri. “Cada bicho tem sua história. A sucuri, por exemplo, é importante no nosso mito da criação. Tem gente que acha ser só um enfeite. Mas pra gente, não é só bicho. É espírito também.”

Além de produzir, ela ensina. Em 2022, foi chamada para uma oficina em uma escola de arte em Goiânia. “Fiquei com medo, não falo bem o português. Mas levei minhas peças, mostrei devagar. Eles ficaram encantados. Quiseram aprender mesmo”, conta, com um brilho nos olhos que revela orgulho e surpresa.

Lubederu Karajá, de 55 anos, aprendeu com a mãe e as tias, como tantas outras artesãs indígenas. Mas tem um costume que a diferencia: conversar com o barro. “Eu falo baixinho: ‘Vamos trabalhar, barro. Vamos virar boneca’. Parece besteira, mas o barro tem alma. Ele sente quando a gente está triste. Se estiver nervosa, a peça quebra.”

Ela mora na aldeia Macaúba e é conhecida por sua atenção aos detalhes: brincos de semente, cocares feitos com penas de arara, traços finos que revelam paciência e técnica. Nas peças, a vida da aldeia aparece em pequenas cenas — crianças pescando, mulheres batendo mandioca, velhos sentados em roda, contando histórias. “O povo pensa que a gente faz só bonequinha parada. Mas tem boneca em roda, boneca cozinhando, boneca com neném nas costas. É a vida da aldeia.”

Lubederu já participou de feiras internacionais e expôs no Museu do Índio, no Rio de Janeiro. Com voz mansa, mas firme, fala do orgulho que sente por ver sua cultura valorizada — mas também da dor quando vê a arte sendo copiada por quem não conhece o significado. “Tem muito branco copiando. Vê a boneca, faz parecida, vende como se fosse nossa. Isso machuca. Porque a Ritxoko tem dono. Tem história. Tem mãe.”

Juntas, as histórias de Kaimoti, Seweria e Lubederu mostram que moldar barro é mais do que produzir arte. É manter uma memória viva, costurada com ancestralidade, afetos, espiritualidade e resistência. Como diz Seweria: “Cada boneca carrega um pedaço da nossa vida”.

Patrimônio, renda e transformação

O reconhecimento das Ritxoko como Patrimônio Cultural Imaterial do Brasil, concedido pelo Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) em 2012, foi um marco para os Karajá. O processo envolveu diálogo com as comunidades, que viram na iniciativa uma forma de proteger a prática. O documento destaca que a boneca é mais que objeto: é instrumento de transmissão de saberes, afirmação identitária e continuidade cultural. O termo “Ritxoko” designa tanto a boneca quanto a prática social que a envolve.

Desde então, surgiram iniciativas de apoio com formação, divulgação e logística. Mas ainda há desafios com transporte, infraestrutura e revenda sem autorização. “Às vezes, o atravessador paga R$ 30 por uma boneca que ele vai vender por R$ 200 na cidade. Nem todo mundo tem celular, carro ou feira para vender. Tem artesã que precisa do dinheiro, então aceita”, diz Lubederu.

Apesar das dificuldades, a cerâmica tem transformado a autonomia das mulheres Karajá. O que antes era visto como passatempo infantil, hoje é também sustento e decisão. “Antes, as decisões eram dos homens. Agora, as mulheres se reúnem, discutem, decidem juntas. A boneca não é só renda — é autonomia”, afirma Rosani.

Essa transformação impacta inclusive as mais jovens. Algumas aprendem o ofício no dia a dia familiar. Outras, nas escolas indígenas, que passaram a incluir oficinas de Ritxoko. “Quando eu era pequena, não queria saber. Achava difícil. Mas quando vi minha mãe vendendo, vi que era importante. Agora, aprendi também. Já fiz três bonecas grandes e vendi”, conta Izani Karajá, de 16 anos.

Resistência moldada no barro

Num Brasil que ainda marginaliza povos indígenas e seus saberes, as Ritxoko são mais que peças de arte: são resistência, continuidade e presença. Moldadas com calma, pintadas com símbolos ancestrais e vendidas de mão em mão, ocupam espaços que antes lhes eram negados — museus, vitrines, reportagens.

Cada Ritxoko é um gesto político, estético e afetivo. Fala da terra, das águas, das histórias que o tempo não apagou. E das mulheres que, com dedos cobertos de argila, seguem moldando não apenas bonecas, mas seus próprios caminhos.

“A boneca é nossa forma de mostrar que estamos aqui. Que não esquecemos. E que temos orgulho do que somos”, diz Lubederu.

E como as ceramistas gostam de repetir, em voz baixa, mas firme: “Quem leva uma Ritxoko, leva um pedaço da nossa história”.

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