Em uma comunidade localizada às margens da BR-319, um grupo de 58 famílias lida, há pelo menos duas décadas, com o impasse ambiental que impede a pavimentação de 52 km do trecho do meio da rodovia. A dualidade entre progredir e preservar uma das florestas mais importantes do mundo coloca em evidência os desafios da continuidade, de maneira sustentável, de uma obra que rasga a amazônia.
Moradora de Santo Antônio do Mamori, no Amazonas, a líder comunitária Nilcinha Amaral se diz a favor da obra, mas acredita que a população local ainda não está preparada para eventuais mudanças que a pavimentação trará.
“A gente sabe que vai facilitar a vinda de grãos, o acesso aos alimentos, como carne e frango. Aí pergunto: qual o projeto que está sendo feito para isso? O que contempla? Qual a segurança que nós, que moramos no entorno da BR, temos para nos prevenir desse impacto? Quais são os projetos que vêm atender essas comunidades?”, questiona a líder comunitária.
Em meio à COP30, o governo brasileiro se vê pressionado a encontrar uma solução viável e sustentável para pavimentar o trecho do meio da rodovia BR-319, que liga Manaus (AM) a Porto Velho (RO). Entretanto, o alto risco do aumento do desmatamento e as possíveis consequências aos povos indígenas esbarram na continuidade das obras.
Localizada em uma zona sensível da região amazônica, as obras na BR-319 podem gerar 8 bilhões de toneladas de CO2, o equivalente às emissões de 22 anos de desmatamento na floresta. A estimativa considera a hipótese de que a rodovia seja reconstruída e pavimentada nas condições inicialmente estabelecidas pelo governo, como aponta um estudo da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais).
Para organizações ambientais, a proposta vai na contramão das metas estabelecidas pelo Brasil na Convenção das Nações Unidas sobre Mudança do Clima, do compromisso de desmatamento zero até 2030 e até mesmo dos temas defendidos na COP30 (Conferência das Partes).
Apesar disso, grande parte das comunidades da região defendem a pavimentação da rodovia. Porém, para esses moradores, a pista deve estar condicionada de forma que reduza os impactos gerados ao ambiente e à população local.
“As pessoas querem, mas de forma que garanta a permanência desses povos da floresta, da fauna e da flora. Aqui no território, a gente, que convive com as comunidades, vê que é muito difícil quem não queira a pavimentação”, comenta Raquel Bastos, técnica de comunicação da ONG Casa do Rio, voltada para o desenvolvimento sustentável da BR-319.
Com 918 km de extensão, a rodovia é cercada por áreas de preservação ambiental, terras indígenas e comunidades rurais. Em meio às demandas socioambientais, a estrada traz o desafio de conciliar as necessidades de transporte com sustentabilidade e políticas públicas orientadas.
Linha do tempo da BR-319
O impasse do asfalto
Entre embargos e licenciamentos, a autorização para a pavimentação da rodovia vem sendo alvo de ações judiciais desde o início dos anos 2000. Em uma movimentação mais recente, em julho deste ano, o TRF-1 (Tribunal Regional Federal da 1ª Região) retomou os efeitos da liminar que suspende a validade da licença prévia, emitida em 2022 pelo Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis).
Antes disso, em outubro de 2024, a liminar foi derrubada, favorecendo o início das obras. A decisão foi tomada meses depois de a 7ª Vara Federal Ambiental e Agrária do Amazonas suspender a licença alegando “riscos de danos irreversíveis à floresta amazônica”.
A coordenadora de políticas públicas do Observatório do Clima, principal rede da sociedade civil que atua em pautas ambientais, Suely Araújo, afirma que o asfaltamento levará à explosão do desmatamento na região, principalmente devido à abertura de “ramais” que facilitam a entrada na floresta, favorecendo a grilagem e a devastação.
Segundo Suely, a viabilidade das obras na rodovia depende da implementação de uma série de medidas de governança para controle ambiental. Entre elas, regularização fundiária, destinação correta de áreas públicas, garantia de desenvolvimento regional e consolidação das unidades de conservação, “que vão muito além do asfaltamento da estrada”, ressalta.
Entre 2010 e 2024, por exemplo, os desmatamentos em municípios da BR-319 chegaram a quase 947 mil hectares. Em relação às terras indígenas da região, 775ha foram desmatados em 2024 — o que corresponde a 21% dos territórios, segundo dados do Observatório da BR-319.
“A gente, do Observatório do Clima, não diz que a estrada é impossível para sempre. A gente diz que ela é impossível hoje, porque não tem condições de governança na região”, explica Suely, acrescentando que, sem isso, não é possível emitir uma nova licença prévia.
Na contramão dos esforços de entidades ambientais, o Congresso aprovou, em julho, um projeto de lei que cria novas regras para o licenciamento ambiental, simplificando adesões e diminuindo o poder de determinadas autoridades envolvidas no processo do documento.
A sanção do governo federal veio em 8 de agosto, mas com 63 dispositivos vetados. Entre as principais derrubadas do governo, está o veto sobre a autorização de regras locais de licenciamento em cada estado e município, além de artigos que permitiam a licença autodeclatória.
O movimento do governo buscou conciliar “um novo ciclo de prosperidade em que a economia não brigue com a ecologia, mas faça parte da mesma equação”, como afirmou a ministra do Meio Ambiente e Mudança do Clima, Marina Silva.
O outro lado da estrada
Há mais de 40 anos morando na região, Nilcinha, líder comunitária que aparece no início da reportagem, diz que as obras são inevitáveis. Entretanto, ela acredita ser necessário que tanto o governo quanto instituições privadas desenvolvam trabalhos junto às comunidades, voltados, principalmente, à segurança, educação e saúde.
Assim como outros moradores locais, ela cobra uma pavimentação de qualidade, durável, sustentável e que seja construída sob critérios de responsabilidade social.
Na região, a precariedade vai além do asfalto e compromete trechos da rodovia onde duas pontes desabaram sobre os rios Curuçá e Autaz-Mirim em 2022. Na época, um dos acidentes causou a morte de ao menos cinco pessoas.
Com a queda, viagens que levavam no máximo duas horas passaram a durar mais de três, principalmente em razão das filas formadas na travessia das balsas.
A falta de infraestrutura e a demora para atravessar o trajeto causaram prejuízos não só aos motoristas, mas aos moradores locais, que viram preços de produtos como alimentos e gás aumentarem drasticamente.
Em uma das situações, por exemplo, o preço do gás de cozinha, normalmente vendido a aproximadamente R$ 120, saltou para R$ 230, como relataram moradores à reportagem. Além disso, por ser uma região próxima aos rios, moradores também usam barcas. Porém, fica ainda mais complicado nas épocas em que o rio seca.
“Se você for à região do lago, as coisas são bem mais caras, porque o trânsito é mais longo e é mais longe. Tudo isso vai encarecendo nosso produto final”, comenta Nilcinha.
A situação se agrava em épocas de chuva, quando a poeira da rodovia vira lama, e a pista fica intransitável. Além da escalada dos preços dos alimentos e de outros itens básicos, moradores sofrem com a carência de centros de saúde e educação, por exemplo.
“Tem anos em que a gente fica intrafegável, que conseguimos sair uma vez por mês. Aí, a alimentação fica muito cara para a gente, tudo praticamente chega o dobro para ser vendido. A nossa situação fica precária. A gente se preocupa muito na área da saúde também, porque, se acontece um acidente grave ou alguém passa mal, até chegar na cidade, está praticamente morto”, diz Angleice Batista, professora e moradora da comunidade São Sebastião do Igapó Açu, território localizado a cerca de 360 km da rodovia.
Preço ambiental
Entre ciclos viciosos de desmatamento, há décadas a região amazônica vem sofrendo com devastações e intensas alterações climáticas. Apesar da queda em comparação ao ano anterior, em 2024, por exemplo, o desmatamento acumulado na floresta foi de 3.739 km².
Na região da BR-319, a situação não é muito diferente. Em municípios próximos da rodovia, o nível de desmatamento saltou de 22.580 hectares em 2010 para 40.105 hectares no ano passado. O índice é considerado pequeno quando comparado com 2022, que registrou 168.999 hectares desmatados, segundo dados do Observatório da BR-319.
Para ambientalistas e organizações não governamentais, a pavimentação pode causar danos irreversíveis à amazônia. O próprio Ministério dos Transportes, responsável pela obra, apontou em um relatório de 2021 que obras como as da BR-319 causam impactos ao meio ambiente.
“Alguns impactos são considerados muito significativos e podem prejudicar os rios, os solos, os animais, as plantas e o ser humano. Por isso, antes das obras, são feitos os estudos ambientais, para entenderem a área onde está inserido um empreendimento e propor medidas que evitem danos ao meio ambiente” diz o relatório.
Outro documento, desta vez feito pelo Observatório da BR-319, indica que 21% das terras indígenas e 40% das unidades de conservação apresentaram desmatamento em 2024.
Para ambientalistas e ONGs voltadas à discussão do tema, a maior preocupação é o impacto que a rodovia trará, não só para a floresta, mas para as comunidades indígenas.
A pavimentação do trecho do meio, feita em condições que não consideram o impacto ambiental causado, ameaça 40 unidades de conservação, 6 milhões de hectares de terras públicas e 50 terras indígenas — isso é o que mostra um estudo feito pela Universidade de Minas Gerais.
Além disso, a possível redução das chuvas, provocadas pelas mudanças climáticas na região, poderá causar um prejuízo de mais de US$ 350 milhões anuais apenas nas receitas de geração de energia hidrelétrica, cultivo de soja e pecuária.
Em meio às dificuldades da população local e ao impasse ambiental, a diretora-executiva da ONG Casa do Rio, Eliane Soares, menciona a preocupação das consequências do aumento da trafegabilidade e da criminalidade na região, como garimpo, tráfico e exploração florestal.
“A BR-319 é uma veia que passa aqui no Amazonas, que traz e leva muita coisa. O cerne é mais a questão do impacto. A partir do momento em que a gente faz esse asfaltamento, em que a gente faz essa veia funcionar 100%, funcionar no sentido de que vai haver mais trafegabilidade, as pessoas vão migrar dessas margens dos rios para a beira da estrada. É algo que já se sabe que vai acontecer. O que me deixa mais indignada é o que vai ser feito em relação a isso, para mitigar esses problemas que serão causados”, salienta.
Eliane diz que não é contra a rodovia, mas acredita ser necessária a discussão sobre o que será bom para o desenvolvimento da região. A diretora alerta, ainda, para a carência de políticas básicas para moradores locais.
“As pessoas pensam muito que eu vou ter a BR porque eu vou conseguir ir e vir, vou conseguir acessar o hospital mais fácil, vou conseguir acessar a escola mais fácil. Era para ser o contrário, era para escola estar lá, para o hospital estar lá, para as necessidades básicas serem supridas por causa da BR, e não porque eu vou facilitar a chegada a Manaus”, observa.
Movimentação política
Em um acordo recente, os ministérios do Meio Ambiente e Mudança do Clima e dos Transportes elaboraram uma proposta de plano de ação que tem por objetivo fortalecer a governança, o ordenamento territorial e as atividades produtivas sustentáveis na região.
Segundo o Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima, o plano considera que a BR-319 abrange um território sensível e que pode sofrer pressões, o que, consequentemente, “demanda planejamento, governança, articulação interfederativa e soluções de curto, médio e longo prazo”.
Em nota, a pasta reforçou que o texto proposto considera o alinhamento da implementação de áreas protegidas, a destinação de florestas públicas, o reconhecimentos dos povos tradicionais, além de aspectos como fortalecimento da fiscalização ambiental e das investigações contra a grilagem.
“Espera-se que a implementação do plano alcance resultados concretos na redução do desmatamento, da grilagem e de incêndios na região. A partir disso, o processo de licenciamento ambiental poderá ser retomado, tendo como foco a mitigação dos impactos diretos e indiretos dimensionados no plano de ação”, diz o texto.
Antes do acordo entre as pastas, a ministra Marina Silva defendeu uma análise ambiental para pavimentação da rodovia. Na época, a ministra comentou que poderia haver um agravamento de questões prejudiciais ao meio ambiente com as obras.
Em uma tentativa de tornar mais sustentáveis os modais de transporte, a ANTT (Agência Nacional de Transportes Terrestres) aprovou no ano passado um programa de sustentabilidade para infraestrutura de rodovias e ferrovias federais.
O órgão diz que a iniciativa tem por objetivo proporcionar “práticas modernas de sustentabilidade, enfrentando desafios ambientais, sociais e climáticos”
Além do envolvimento de setores da ANTT, a regulação se aplica tanto aos novos contratos quanto aos já existentes. Segundo a agência, a aplicação do programa se restringe a ferrovias e rodovias federais sob gestão privada. Logo, a política não se estende à BR-319.
O setor de transporte e o custo climático
Essencial para a mobilidade e o desenvolvimento econômico e social, o setor de transportes foi responsável por quase 50% das emissões de gás carbônico em 2024, segundo dados da Empresa de Pesquisa Energética, ligada ao Ministério de Minas e Energia.
Apesar disso, o setor vem se esforçando para investir em tecnologias de mobilidade mais sustentáveis, como hidrogênio verde, biocombustíveis e baterias elétricas, por exemplo.
Além dos combustíveis renováveis, a integração de práticas sustentáveis e de responsabilidade socioambiental também deve estar presente na infraestrutura das rodovias. Segundo a CNT (Confederação Nacional dos Transportes), a qualidade dessas pistas está diretamente atrelada ao aumento do consumo de combustíveis e, consequentemente, à emissão de gases de efeito estufa.
Outro fator contribuinte para as emissões é a manutenção do pavimento. No Brasil, a maior parte da malha rodoviária é feita com um pavimento flexível, “que possui revestimento de asfalto, é economicamente mais acessível e apresenta maior facilidade de manutenção — embora uma durabilidade menor”, aponta estudo do IPC (Investidores pelo Clima).
Em um cenário de crescimento, dados do Conselho de Preservação para a América Latina estimam que, no mundo, ao menos 25 milhões de quilômetros de novas estradas serão construídos até 2050. Dessas, 90% estarão em países em desenvolvimento e em áreas que “abrigam alguns dos refúgios de biodiversidade mais insubstituíveis do planeta”, como a amazônia.
Segundo a professora de engenharia de transportes da COP e da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) Andrea Santos, entre os pontos de atenção está o tipo de asfalto usado na construção — o que interfere diretamente na qualidade da pista.
“Nessas licitações de obra, muitas vezes não são fiscalizadas a empreiteira, a empresa, e ela usa um asfalto de baixa qualidade. Com pouco tempo, você tem uma série de danos no pavimento, que são buracos e rachaduras. Então, uma série de problemas que demandam manutenção, recuperação do trecho, tudo isso gera realmente mais impacto em termos de emissão”, detalha Andrea.
O maior dilema é como o setor rodoviário pode avançar sem prejudicar comunidades locais e o ambiente ao seu redor. Além disso, deve-se considerar como as mudanças climáticas podem afetar projetos de infraestrutura.
No caso da BR-319, o diretor da FGV (Fundação Getúlio Vargas) Transportes, Marcus Quintella, explica que o projeto da rodovia envolve desafios ambientais grandes. O especialista destaca a importância de um planejamento para mitigar impactos ambientais e nas comunidades locais.
“É uma rodovia que vai demandar altos custos, não só de construção como de manutenção. Está dentro de uma área com volumes pluviométricos altos, tem que prever sistemas de drenagem, tem a segurança também que você está dando acesso a toda essa região. Então, pode causar problemas”, destaca.
Segundo Quintella, eventuais prejuízos em obras rodoviárias devem ser avaliados levando em conta, além dos custos financeiros, os impactos ambientais e sociais.
“Tornar uma rodovia mais sustentável, com um bom projeto, é prever uma transição de fontes de energia mais limpas. Então, você tem que trabalhar com as melhores rotas, com as tecnologias de gestão de tráfego e gestão de monitoramento permanente da faixa de domínio, em tempo real e com fiscalização efetiva, para que todas essas situações indesejáveis possam ser protegidas”, explica.
Para Andrea Santos, uma rodovia sustentável inclui tecnologias interventivas que agregam a essa pista, tornando-a mais resiliente e menos prejudicial ao meio ambiente.
Segundo a especialista, medidas como gerenciamento da fauna e flora, planos de recuperação florestal e iluminação com lâmpadas de LED estão entre os mecanismos que devem ser incorporados a rodovias.
Em rodovias como a BR-319, por exemplo, Andrea menciona que a criação de uma regulamentação que estabelece esses padrões de construção facilitaria o cumprimento de regras que mitiguem impactos ambientais.
“A gente tem alguns cases que eu até posso mencionar. Por exemplo, no litoral norte da Bahia, eles têm uma rodovia concedida, administrada por uma concessionária. Fizeram não só túneis subterrâneos para a passagem de animais silvestres, como no formato aéreo de ponte”, conta.
Em um contexto que abrange povos originários, pequenos produtores, pesquisadores, ambientalistas, governo e sociedade privada, é nítida a urgência dos desafios que devem ser enfrentados na região.
Neste cenário, o Brasil se torna palco de discussão ambiental com a COP30 na própria amazônia e quer se posicionar como potência líder de desenvolvimento verde. Assim, a estrada abre oportunidades para direcionar os esforços em busca de caminhos sustentáveis e da capacidade de adaptação às necessidades ambientais.

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