“Podemos gravar tudo que for preciso, mas só até dia 09. Eu tenho um show do João Carlos em Nova York. É uma apresentação de despedida”. George estava preocupado: não queria que o compromisso se transformasse em um problema para as gravações do programa Repórter Record Investigação - Nascido No Holocausto. Depois de alertar nossa produção algumas vezes sobre a agenda, já havia intimidade suficiente para perguntar: “George, a gente pode ir ao show com você?”.
Diante de um Carnegie Hall lotado, o maestro e pianista João Carlos Martins se despediu dos palcos internacionais. No repertório, o tema do filme “A Lista de Schindler” (1993), longa premiado do diretor Steven Spielberg sobre os horrores do Holocausto.
A música foi dedicada ao amigo que estava na plateia - George Legmann, 80 anos, um sobrevivente da Segunda Guerra Mundial. Uma trajetória que desafiou todas as probabilidades. “A minha sobrevivência era totalmente improvável. Eu tinha 99,99% de chance de não sobreviver”, diz George.
Todos os cálculos foram refeitos por Elisabeta - a mãe de George. “O que mais me chamou a atenção foi que ela mostrou o que significa amor à vida. E este amor à vida, o George preservou até os dias de hoje”, explica João Carlos Martins.
O maestro de 85 anos sofre de distonia focal, doença considerada rara que afeta o movimento dos dedos. Uma luva especial e a incansável vontade de preservar a própria música ajudam a manter o brilhantismo de João Carlos ao piano.
Logo, a trilha sonora que preenche o Carnegie Hall parece transportar George para uma jornada de sobrevivência que começou antes mesmo que ele nascesse.
Papi
Entre livros e fotos antigas, o envelope pardo marcado à caneta leva o nome do dono: “Papi” - o modo carinhoso como George é chamado. Dentro, uma folha de papel com dobras bem marcadas pelo tempo. O documento ostenta um carimbo de novembro de 1961 e é um “Certificado de Viagem” do governo da Romênia. A autorização que mudaria para sempre a vida do dono.
Foi com esse documento que ele conseguiu vir ao Brasil, aos 16 anos, deixando para trás um passado que carrega as marcas mais dolorosas da história recente da Humanidade. O papel divide espaço no envelope com a cópia de uma outra documentação, da mãe dele. É mais um certificado, muito bem descrito por uma anotação de rodapé: “identificação da vovó depois que saiu do campo”.
A “vovó” é Elisabeta Legmann, nascida em 1916. O “campo” é o campo de concentração de Dachau. Construído em 1933, foi considerado um modelo para a indústria genocida que o governo nazista de Adolf Hitler iria estabelecer durante a Segunda Guerra Mundial. E foi no lar de uma tragédia sem precedentes que George nasceu.
Mas como o choro de um recém-nascido quebrou o silêncio da morte? Quando decidimos contar a história de George para uma edição especial do Repórter Record Investigação, parecia óbvio que era preciso voltar àquele lugar que ele pouco conheceu, mas que marcaria a vida dele para sempre. O campo de concentração.
As chances de sobrevivência nesses campos eram extremamente baixas. Para crianças, praticamente nulas. Mas a partir de dezembro de 1944, não apenas um, mas sete bebês nasceram em Dachau.
Karl Freller, diretor da Fundação Memoriais da Baviera, afirma: “Toda gravidez era interrompida ou a criança era assassinada após o nascimento. Esses sete bebês são os sobreviventes mais novos que existem na história do Holocausto”

Hitler queria exterminar a população judaica do mundo. Mas sete crianças nasceram e todas sobreviveram. Eu sou uma das sete. E eu sou o primeiro, que nasceu em 8 de dezembro de 1944
Munique, 2025
Dachau fica a menos de meia hora da cidade de Munique, capital e a maior cidade do estado alemão da Baviera. Munique é o endereço da alegre Oktoberfest, celebração anual regada a muita cerveja.
Munique é moderna, eficiente e bonita. Mas as cicatrizes se escondem nos detalhes. A torre do Parque Olímpico é um marco de uma Alemanha que ansiava por um novo capítulo quando sediou os Jogos de 1972. O nadador americano Mark Spitz conquistou sete medalhas de ouro, um recorde olímpico que permaneceu por quase quatro décadas.
Mas a competição não seria lembrada apenas por glórias, e sim pelo que os alemães temiam: uma nova tragédia. Um atentado resultou na morte de 11 integrantes da delegação de Israel, em um ataque terrorista promovido pelo grupo palestino Setembro Negro.
Foi neste mesmo palco de uma dor persistente que a narrativa de George Legmann se iniciou, a alguns quilômetros de distância, quase 30 anos antes.
O parto
Hoje, o Campo de Concentração de Dachau funciona como um memorial. Alguns dos barracões erguidos abrigam um museu, com itens recuperados dos tempos da Segunda Guerra. O crematório também está preservado.
Logo na entrada do Campo, um homem aborda George com uma afirmação surpreendente: “Eu carrego uma foto sua aqui na minha pasta, todos os dias!”. Era um guia do Memorial, que se habituou a contar a história surpreendente dos bebês que nasceram em Dachau no final da Segunda Guerra. Dessa vez, o próprio George participa do relato e surpreende um grupo de jovens.
Ele explica que a mãe, Elisabeta, vivia com o marido na Romênia. Descobriu a gravidez em abril de 1944. Logo procurou interromper a gestação - tinha medo do que poderia ocorrer durante a Guerra. Mas não conseguiu: o médico dela foi preso um dia antes. Não demorou muito para que a família Legmann também fosse capturada e colocada em um trem com destino ao campo de concentração Auschwitz-Birkenau, na Polônia - o principal e mais cruel.
Onde Tudo Começou
George observa a área em que ficava o subcampo onde nasceu — hoje transformada, mas ainda marcada pela memória do Holocausto.
Durante a viagem, Josif Legmann, pai de George, conseguiu o improvável: escapar do trem, depois de um guarda ter cometido o erro de deixar a porta do vagão destrancada. Josif prometeu ir em busca de ajuda para a família.
Chegando em Auschwitz, a separação dos familiares foi rápida e cruel. O tio de George havia pisado em um prego acidentalmente e estava com o pé infeccionado; já o avô materno estava fatigado e sem condições de andar. “Na plataforma se anunciava: ‘quem não puder, não tiver força de andar, ou se sentir cansado, pode entrar nesses caminhões que levarão vocês para os alojamentos’. Quem entrou nesses caminhões foi direto para a câmara de gás”, comenta George.
A minha mãe perguntou para alguém: ‘você sabe para onde foram o meu pai e meu irmão?’ e a pessoa respondeu: ‘você está vendo aquela fumaça que está saindo por aquela chaminé? Eles estão saindo por lá'
Mãe e avó foram encaminhadas para a Alemanha, onde passaram por quatro campos de concentração até chegarem ao destino final, em Dachau.
Carlos Lopes, guia do Memorial de Dachau, nos relata a recepção cruel que o prisioneiro recebia: “Ele passava pelo portal e ia para o pátio da chamada. Lá, recebia as instruções sobre a vida no campo de concentração e era maltratado como animal. (Os nazistas) falavam ‘vocês não serão bem tratados aqui’. Depois das informações, eram mandados para a sala de triagem”, diz. Segundo Carlos, “o prisioneiro sabia que naturalmente não tinha volta, ele sabia que só sairia se fosse para trabalhar em outro lugar.”
O campo de concentração possuía os chamados subcampos - espaços longe da sede principal que também estavam lotados de trabalhadores forçados. E foi em um desses subcampos que George nasceu. “Na verdade, o lugar onde eu nasci não existe, porque foi tudo demolido para ser escondido e, agora, é um campo de tênis. Isso mostra que tentaram esconder a verdade, mas a história foi escrita. Depois que escrita, não pode ser mudada. Está tudo documentado. É inacreditável que as novas gerações não saibam da verdade”, explica George.
É um sentimento dúbio que se espalha por Munique, e talvez por toda a Alemanha: ao mesmo tempo que é preciso deixar para trás toda a violência do passado, é preciso preservar as lembranças do que ocorreu, para que não se repita.
Nós acreditamos que, se falarmos sobre a história e se ensinarmos as pessoas sobre ela, então talvez possamos compartilhar os mesmos valores e respeitar todos os humanos na Terra
Há iniciativas na Alemanha que incentivam visitas a campos de concentração e memoriais do nazismo como parte do currículo escolar, com o objetivo de educar os alunos sobre o Holocausto e a resistência ao regime nazista. Placas, monumentos e memoriais estão espalhados pelo país, servindo para preservar a memória e estimular a reflexão. Locais que antes simbolizavam a grandeza do regime de Hitler hoje são transformados em espaços de lembrança, exposições e centros culturais dedicados à educação e à conscientização sobre os crimes nazistas.
Havia 200.000 prisioneiros nos campos de concentração de Dachau e nos subcampos, de 14 nacionalidades, e 41.500 morreram aqui no campo de concentração de Dachau, no campo principal, e nos 140 subcampos na Baviera

Elisabeta não queria dar à luz naquelas condições. Mas, com a ajuda da avó de George e de outros prisioneiros, conseguiu esconder a gravidez até os últimos meses. E a história dela se repetia pelo campo: outras seis mulheres também estavam grávidas. Juntas, elas se ajudaram - até mesmo durante o parto.
Quando passava marchando por capos e supervisores, eu torcia o corpo o máximo possível para o lado, protegendo a minha barriga do olhar deles
“Capos” eram prisioneiros escolhidos pelos nazistas para atuar como supervisores ou vigilantes dentro dos campos de concentração. O papel deles incluía distribuir tarefas, fiscalizar o trabalho e aplicar punições, o que permitia aos guardas manterem o controle sobre os presos sem precisar de uma presença constante. Alguns capos colaboraram mais intensamente com a estrutura de dominação e terror, exercendo o poder de forma cruel sobre os demais internos, enquanto outros usaram a autoridade para ajudar companheiros.
“Quando minha mãe deu à luz, ela recebeu a ajuda de uma capo chamada Luba. O frio era terrível. Luba então trouxe um fogão a lenha para aquecer as mulheres e os bebês, mas dois agentes nazistas viram a cena e perguntaram quem tinha levado aquilo para o alojamento. Luba confessou e foi espancada”, conta George.
Antes de ter o bebê, Elisabeta passou por um momento de grande tensão: o dia em que a gravidez foi descoberta por um líder nazista. E não foi só ela. George conta: “Ele pediu para todo mundo verificar, para os subalternos deles, e acharam sete mulheres grávidas”.
O que iria acontecer com aquelas mulheres agora? A atitude do líder nazista foi surpreendente. “Ele achou que, se deixasse as mulheres grávidas darem à luz, seria um álibi para ele no fim da guerra.”
Naquele momento da Segunda Guerra, o líder sabia que os nazistas estavam em desvantagem. Tudo indicava que uma atitude humanitária poderia garantir uma pena menor diante de uma acusação de crimes de guerra. “Podem até ter sido considerações mais humanas, é muito difícil definir. Mas eu acho que, no geral, a atitude teve um motivo oportunista”, comenta a pesquisadora Edith Raim.
No fim da Guerra, ao ser levado a julgamento, a situação se inverteu: a esposa do líder nazista procurou Elisabeta para pedir ajuda. A mãe de George fez uma carta em que narrou a preocupação do comandante nazista com todas as mães. Assim, ele teve uma punição muito menor.
“Ele não era uma pessoa boa, era responsável pela morte de muitas pessoas. Mas ele sabia que a guerra iria acabar. E foi muito importante para ele que Elisabeta Legmann escrevesse essa carta”, afirma Martina Gawaz, documentarista alemã responsável pelo documentário “Nascido em um Campo de Concentração”.
Ela dividiu a direção com a também documentarista Eva Gruberova, que complementou: “É uma história incrível e dramática. Nós fomos montando nossas pesquisas como um quebra-cabeça, juntando informações aqui e ali. E quando você conta isso a alguém, a primeira reação é de surpresa, porque não podiam acreditar na existência das crianças.”
O livro
George sempre soube que nasceu em um Campo de Concentração, mas encontraria a peça fundamental desse quebra-cabeça com a ajuda de Irene - “mami”, esposa dele há 39 anos.
A família dela administra uma editora que traduz livros. Certo dia, eles receberam uma publicação alemã escrita por Edith, com uma foto de bebês nascidos em um campo de concentração. E lá estava George, no colo de Elisabeta. Irene logo reconheceu a sogra. “Esta é uma história incrível. A Irene me contou que recebeu o livro no Brasil e que eles pretendiam publicar a versão traduzida, então foi uma das coincidências mais maravilhosas da minha vida”, diz Edith.
Irene recorda que Elisabeta manteve o silêncio sobre o Holocausto por muito tempo. Ela só teve a dimensão do trauma de Elisabeta depois de uma aula de natação.
“A primeira vez que ela mencionou alguma coisa assim mais específica foi quando meus filhos começaram a fazer natação e eu convidei ela para assistir. Quando ela entrou, sentiu aquele cheiro forte de cloro que tem nas piscinas e quase desmaiou nos meus pés. Ela comentou que não conseguia sentir o cheiro nem do cloro e nem de batata e cebola podre”. A explicação era simples: a experiência sensorial a transportava para os dias difíceis no campo de concentração.
A pesquisadora Edith acompanhou George e Irene pelo que restou de Kaufering, um dos subcampos de Dachau. A pesquisadora estava magra e um tanto abatida - na época, enfrentava um tratamento para uma doença agressiva.
Edith nos conta: “Em Auschwitz, as pessoas foram mortas por gás. E aqui, elas foram mortas por trabalho. Porque elas, literalmente, trabalharam até morrer”.
Mesmo fragilizada, ela fez questão de participar das gravações. Faleceu poucos meses depois da entrevista. “Edith já estava muito doente, saiu do hospital exatamente para encontrar a gente, para explicar tudo aquilo para o programa. Infelizmente, um mês depois, ela veio a falecer. É uma pena, ela era uma grande pessoa”, relata George.

Em busca de um lar
No dia 29 de abril de 1945, as tropas norte-americanas libertaram os prisioneiros de Dachau.
As mães e os bebês foram enviados para um abrigo nas redondezas. Mas, no trajeto de trem, outro acontecimento quase custou a vida desses sobreviventes: a Força Aérea Britânica (RAF) bombardeou por engano os vagões. Eles achavam que se tratava de um transporte de nazistas.
É mais um momento que emociona George. O único vagão que se salvou das bombas foi o último, em que toda a família estava.
Com o fim dos conflitos entre os países, iniciou-se o difícil processo de retorno ou realocação dos sobreviventes. A estrutura do campo, os transportes, o caos pós-guerra, doenças e deslocamentos tornavam cada passo complexo. Mas, finalmente, a família Legmann - avó, mãe e filho - teve a oportunidade de voltar para a terra natal.
Nesse meio tempo, diversas organizações começaram a divulgar os nomes de sobreviventes do Holocausto. O pai de George, que após a fuga havia sido preso pelos soviéticos e só conseguiu a liberdade meses após o fim da guerra, reconheceu em um desses anúncios os nomes da esposa, da sogra e do tão esperado filho. Em outubro de 1945, ele finalmente reencontrou a família. Após 11 meses de vida, George conheceu o pai e retornou à terra natal - a Romênia.
Juntos, eles reconstruíram os laços familiares que a Guerra desfez. Mas iriam prosperar bem longe dali.
Toda a família Legmann veio para o Brasil após um acordo diplomático com a Romênia. A família de George se mudou para São Paulo. Logo foram conquistados pela hospitalidade do povo brasileiro.
Após concluir uma especialização em engenharia química, George recebeu propostas para trabalhar na Europa ou Ásia, mas decidiu se estabelecer no Brasil, onde o coração também encontrou um lar quando conheceu Irene, com quem se casou em janeiro de 1986, depois de um ano de namoro.

Lutar para sorrir
Os dias de gravação na Alemanha foram todos de sol. Exceto o domingo da solenidade que marcou a celebração de 80 anos da liberação do Campo de Concentração de Dachau.
Representando o Brasil, George simbolizou o compromisso do país com a história e com o fortalecimento das relações diplomáticas internacionais em torno da defesa dos direitos humanos. Enquanto segurava a bandeira verde e amarela, declarou, emocionado:
O Brasil é um país que adotou quem pediu qualquer tipo de asilo, recebeu os judeus de braços abertos. Nós tivemos uma nova pátria. Eu fiz uma nova família. E sou muito grato ao Brasil e ao povo brasileiro
A história de George se transformou em uma causa. Nos próximos meses, ele vai trazer para o Brasil uma exposição feita em Dachau sobre a história dos bebês. “Daqui a pouco não vai mais ter gente para contar essas histórias, e isso tem que ser lembrado, para nunca mais acontecer”, reforça George.
A luta por viver, e viver uma vida grande, com propósito, é o que aproximou ele do maestro João Carlos Martins. E também do grande parceiro nessa viagem: o repórter André Tal.
O avô do André foi partisan - fazia parte de um grupo de guerrilheiros que combatiam as forças nazistas durante a Segunda Guerra Mundial. Além disso, André sabe o que é buscar a superação todos os dias.
Ele descobriu a doença de Parkinson em 2018, aos 39 anos. Tornou pública essa condição em 2021, em uma reportagem especial exibida no Domingo Espetacular e indicada ao Emmy Internacional. Passou por um tratamento para amenizar os sintomas neste ano, 2025. Ao fim da recuperação, embarcou para a Alemanha com a nossa equipe e George.
Entre uma entrevista e outra, no frio de Munique, André nos explica como o Parkinson restringe os movimentos. Não é só uma questão de andar ou mexer os braços. As limitações estão nos detalhes. Sorrir não é mais um reflexo; exige dos músculos. Requer esforço, concentração, disciplina. Como na história que nos uniu para ser contada, é preciso lutar para sorrir.

- Diretora de Conteúdo Digital e Transmídia: Bia Cioffi
- Chefe de Redação: Cristiane Massuyama
- Repórter: Rogério Guimarães
- Equipe técnica: New Vision
- Estagiárias: Giovanna Britto, Stella Urze
- Coordenadora de Produções Originais: Renata Garofano
- Coordenadora de Arte Multiplataforma: Sabrina Cessarovice



