Assim como um jacaré que desliza silenciosamente pelas águas barrentas da Amazônia, quase invisível sob a lâmina d’água, os narco-submarinos artesanais construídos em território brasileiro seguem a mesma lógica para cruzar rios, igarapés e até o Oceano Atlântico, transportando toneladas de cocaína.
Essas embarcações semi-submersíveis operam com apenas parte da estrutura exposta, geralmente a cabine e a antena de GPS, o que as torna praticamente indetectáveis por radares e aeronaves. São construídas com o mesmo propósito do réptil: aproximar-se do alvo sem ser percebidas.
O jacaré se move para sobreviver; os narco-submarinos, para abastecer um dos mercados mais lucrativos e letais do planeta. E quando são finalmente avistados, quase sempre é tarde demais: a carga já foi entregue ou a embarcação afundou, apagando seus rastros.
O submarino paraense
No dia 31 de maio, em um igarapé escondido na região do rio Ganhoão, no município de Chaves, na costa marítima da Ilha do Marajó, agentes da Polícia Federal encontraram uma embarcação de aparência incomum. Coberta por uma estrutura improvisada que a fazia parecer um barco regional, com direito até a nome na lateral, tratava-se, na verdade, de um submarino artesanal pronto para a travessia transatlântica.
A operação envolveu a Polícia Federal, a Força Aérea Brasileira (FAB) e a Marinha. A aeronave R-99 da FAB utilizou sensores embarcados e imagens de satélite para mapear movimentações fluviais atípicas na região. Segundo os investigadores, a droga viria de comunidades ribeirinhas abastecidas por embarcações menores, vindas do Amazonas e de outros rios do Norte.
“Usamos satélites, sensores aeroembarcados e inteligência artificial para reduzir o tempo de pronta resposta e sermos mais eficientes”, explicou o Brigadeiro Leonardo Mangrich, chefe do Centro Conjunto de Operações Aeroespaciais da FAB.
Submarino artesanal apreendido pela PF
Submarino artesanal apreendido pela PF na Ilha de Marajó
Pará: novo ponto de partida
A localização da embarcação reforça uma mudança no cenário do narcotráfico: o Pará está se consolidando como base de montagem e despacho de narco-submarinos rumo à Europa.
“A investigação da Polícia Federal indica que o modal fluvial, pela facilidade de acesso ao oceano aqui no Pará, tem se intensificado”, afirmou o delegado Fernando Casarin, da Polícia Federal.
O submarino apreendido no Marajó ainda estava nos retoques finais. Uma análise feita pela PF em parceria com agências europeias revelou conexões diretas entre essa embarcação e um narco-submarino interceptado no Atlântico em março, a cerca de 925 km dos Açores, carregado com 6,5 toneladas de cocaína. Três dos cinco tripulantes eram brasileiros.
“Equipamentos dentro da embarcação remontavam a aquisições feitas na região do Pará”, afirmou o delegado Osvaldo Scalezi Jr, chefe da Divisão de Repressão a Drogas da PF.
A Ilha de Marajó, com seus 40 mil km² , “praticamente do tamanho da Suíça”, como lembra Casarin, e sua rede hidrográfica complexa, oferece o cenário ideal para esse tipo de operação. O estado abriga estaleiros artesanais que tradicionalmente constroem barcos de pesca. Criminosos compram essas embarcações e adaptam os cascos com fibra de vidro, motores potentes, lastros e estruturas projetadas para navegar rente à superfície, como jacarés espreitando a presa.
Essas embarcações são conhecidas como LPVs (Low-Profile Vessels), projetadas para ter uma silhueta mínima na água. Camufladas com tintas que combinam com o ambiente (azul-acinzentado no Atlântico, verde-água no Pacífico), são praticamente invisíveis tanto a olho nu quanto aos sensores.
O custo estimado para converter um barco regional em um narco-submarino gira entre R$ 1,5 milhão e R$ 2 milhões. Em compensação, o valor da carga pode ultrapassar € 200 milhões (R$ 1,2 bilhão) no mercado europeu.
Se há um investimento tão alto, é porque cada viagem pode transportar de quatro a sete toneladas de cocaína
Tripulação suicida
O tráfico também cobra um preço humano. Os tripulantes dos submarinos, geralmente brasileiros de regiões ribeirinhas, são aliciados com promessas de pagamento ou ameaças. Muitos são pressionados por facções criminosas a embarcar em viagens que podem durar até 21 dias, sem ar-condicionado, com calor sufocante e risco constante de morte.
Nos narco-submarinos apreendidos em Portugal, três dos presos eram do Pará. Cidades próximas a Belém já são apontadas como centros de recrutamento dos “marinheiros” do tráfico.
É uma viagem verdadeiramente suicida. Muitas vezes os tripulantes estão por conta própria no mar; com uma carga valiosa, pouca estrutura e nenhuma garantia de retorno.
Para se ter uma ideia, o submarino apreendido na Ilha do Marajó, ao qual a equipe do Domingo Espetacular, da TV Record, teve acesso, possuía apenas um motor e estrutura extremamente precária. Uma verdadeira gambiarra submersível.
O cenário global
Segundo o InSight Crime, 2024 foi um dos anos com mais apreensões de narco-submarinos no mundo: 30 interceptações, a maioria no Pacífico. Mas o uso da rota atlântica tem crescido: 12 embarcações transoceânicas foram apreendidas desde 2019, sendo oito entre 2024 e 2025.
O Brasil entrou definitivamente nesse circuito. Estaleiros clandestinos já foram identificados na Colômbia, Venezuela, Suriname — e agora também no Brasil. Em Manaus, por exemplo, um LPV que cruzou o Atlântico até a Galícia (Espanha), em 2019, foi rastreado até o Rio Amazonas.
Cooperação internacional
O MAOC-N (Centro de Análise e Operações Marítimas – Narcóticos), sediado em Lisboa, tem sido peça-chave no combate ao tráfico transatlântico. O centro reúne agências da Europa, EUA, DEA, Interpol e outras instituições para compartilhar dados e coordenar operações.
A apreensão em março só foi possível graças à troca de inteligência com a Guardia Civil espanhola. O diretor da Polícia Judiciária de Portugal confirmou que os equipamentos usados nas duas embarcações (a do mar e a do Pará) têm origem comum.
“Temos constatado que organizações criminosas recorrem cada vez mais a essas embarcações”, afirma Artur Vaz, diretor da PJ de Portugal.
O que vem pela frente
A PF acredita que o submarino apreendido no Marajó é apenas um entre vários que já podem ter partido. O objetivo agora é mapear estaleiros, identificar financiadores e desmantelar toda a cadeia de produção desses “jacarés do tráfico”.
“O trabalho é determinar onde estão sendo fabricadas, quem as constrói e quantas já saíram”, diz Casarin.
O grande desafio é impedir que o Pará se consolide como o novo epicentro submerso do narcotráfico internacional.