Imagine um corpo em febre alta, com seus sistemas vitais à beira do colapso. Esta é, metaforicamente, a situação da Terra.
Por anos, a natureza deu sinais claros de esgotamento — queimadas tingiram o céu de vermelho, chuvas devastaram cidades e geleiras começaram a derreter. Ainda assim, a maioria da humanidade seguiu em silêncio, como se houvesse tempo de sobra.
No fim de 2024, um novo alerta veio à tona com um estudo publicado na revista The Lancet e assinado por 60 cientistas da Comissão de Saúde Planetária. A pesquisa revelou que sete dos oito limites ambientais essenciais para a vida já foram ultrapassados.
O relatório adapta o conceito dos nove limites planetários, criado em 2009 pelo cientista sueco Johan Rockström. Cada um deles representa processos que mantêm o equilíbrio da Terra — como o ciclo da água, a integridade da biosfera e o clima. Funcionam como uma bússola para indicar até onde é possível pressionar a natureza sem causar danos irreversíveis.
Com o planeta exausto, entender esses limites e o que já foi ultrapassado é urgente. As análises do Instituto Potsdam (PIK) ajudam a detalhar esse cenário crítico.
Nem todo o mundo enfrenta a mesma crise
Na periferia de São Paulo, as enchentes levavam mais do que bens materiais na vida de Jahzara Oná — roubavam a leveza da infância. Crescendo entre alagamentos, ela logo entendeu que os impactos ambientais eram piores nas áreas vulneráveis.
Foi em meio a uma dessas enchentes, ainda pré-adolescente, que se mobilizou pela primeira vez. “Arrecadei alimentos, roupas, até panelas. As pessoas estavam em situação crítica”, lembra.
Com o tempo, percebeu que o problema não era só a chuva, mas a falta de estrutura básica. No bairro, o esgoto corria a céu aberto direto para um braço do rio Tietê.
Não são todos que têm medo da chuva. Tem gente que adora sentir o cheiro e tomar banho de chuva. Aqui a nossa realidade é diferente.
A jovem se juntou à Fridays For Future Brasil, uma iniciativa impulsionada globalmente pela ativista sueca Greta Thunberg, e sua dedicação a levou a palcos internacionais, onde pôde amplificar a voz dessas comunidades.
Jahzara Oná já esteve na COP27, na COP28 e na COP29, mas ainda vê barreiras na linguagem técnica dos debates climáticos. “Cresci vivendo problemas socioambientais, mas só entendi os termos quando entrei no curso técnico e na faculdade”, conta.
Para ela, é urgente tratar a crise climática como um problema atual, combater o negacionismo e investir em soluções como reflorestamento, preservação de manguezais e financiamento climático.
“Prometeram US$ 100 bilhões por ano, mas talvez o necessário esteja na casa dos trilhões.”
Enquanto isso, os alertas se multiplicam. Em 2024, o planeta teve os dias mais quentes em 175 anos, com temperaturas 1,5 °C acima da era pré-industrial. Os oceanos absorveram 90% da energia do aquecimento, atingindo recorde de calor e acelerando a elevação do nível do mar.
Nos últimos anos, a Antártica teve suas menores extensões de gelo, e o mundo registrou a maior perda de massa glacial da história. Em setembro de 2024, até o deserto do Saara sofreu inundações — um retrato extremo da crise climática global.
Em contrapartida, regiões como a Califórnia enfrentaram a fúria incontrolável de incêndios florestais de proporções históricas, devastando paisagens e comunidades.
Um estudo do PNUMA (Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente), em parceria com GRID-Arendal, prevê que a frequência e intensidade desses eventos só aumentarão, com um crescimento global de 14% até 2030, de 30% até 2050 e de 50% até o final do século.
Para Maria Clara Sassaki, especialista em meteorologia da Tempo OK, o que antes era raro agora se tornou rotina. Além disso, de acordo com ela, é difícil falar que alguma região merece mais atenção do que outra, pois o planeta, como um todo, está em alerta.
“Tínhamos eventos extremos que ocorriam uma vez a cada século. Hoje, muitos deles já acontecem todos os anos”, alerta. Ela destaca que esse padrão está diretamente ligado ao excesso de energia acumulada na atmosfera e aponta fatores agravantes como o desmatamento, a circulação de veículos e o crescimento industrial.
Podemos considerar que já é uma condição climática padrão, um novo normal
A engenheira ambiental Danielly Mello Freire, gerente de sustentabilidade do Pacto Global da ONU – Rede Brasil, amplia a discussão ao afirmar que a crise climática é, na verdade, uma crise múltipla.
“É como se estivéssemos cobertos por um edredom cada vez mais grosso. O que deveria sair como radiação acaba retido como calor”, exemplifica, ao falar sobre o aquecimento global.
Um dos alertas que mais a marcou foi a perda da biodiversidade — uma das fronteiras planetárias já ultrapassadas. Segundo ela, isso indica que estamos diante da sexta extinção em massa, comparável à que eliminou os dinossauros. Espécies de mamíferos, aves, anfíbios e até insetos polinizadores, como as abelhas, estão à beira do desaparecimento.
A causa, segundo Danielly, está no modelo de desenvolvimento historicamente insustentável e nas ações humanas descontroladas.
Ela destaca que a destruição em curso começou com a Revolução Industrial, liderada por países do Norte Global sem preocupação ambiental nem respeito às comunidades tradicionais. Ela reforça que enfrentar essa crise exige reposicionar o capitalismo.
“Estamos nos colocando na própria linha de extinção. Se não mudarmos e adotarmos atitudes regenerativas, não conseguiremos reverter o cenário. Precisamos de um sistema econômico menos exploratório.”
Fim do mundo já começou?
Lixo no oceano é uma das marcas deixadas pelo rompimento dos sete limites planetários que garantem a segurança da vida na Terra
Os sinais do colapso ambiental já são visíveis em ecossistemas sensíveis, como a biodiversidade marinha. A bióloga e doutoranda em conservação da natureza Camile Avelino vê nos recifes de coral um reflexo direto desse desequilíbrio. “Os corais são como termômetros da crise”, afirma.
Ela chama a atenção para a emergência representada pelas chamadas “novas entidades”: resíduos tóxicos, microplásticos e compostos sintéticos que contaminam solos, águas e até os tecidos humanos.
Camile também observa o empobrecimento de ecossistemas como o cerrado e a caatinga, cada vez mais áridos, com impactos diretos na produção de alimentos e no aumento de pragas.
Apesar dos alertas científicos emitidos desde a década de 1970, o avanço das soluções é travado pela falta de vontade política. Danielly destaca que a linguagem técnica da ciência — repleta de termos da física, da engenharia e da meteorologia — precisa ser traduzida em políticas públicas e ações práticas pelas empresas.
A ausência de legislação robusta e a lentidão na implementação de medidas são obstáculos centrais.
Ainda assim, há espaço para otimismo. A recuperação da camada de ozônio, viabilizada pelo Protocolo de Montreal, mostra que decisões multilaterais e boa governança podem funcionar.
“A gente já ultrapassou muitos limites há muito tempo. Agora é hora de regenerar. Temos tecnologia molecular, sabemos lidar com DNA, replicar animais, fazer cruzamentos em laboratório e tornar plantas e animais mais fortes para sobreviver”, afirma.
Danielly conclui destacando a urgência de reinventar os modelos de produção e consumo. Segundo ela, setores como moda e design têm mostrado abertura à mudança, enquanto a indústria de petróleo e gás ainda resiste à descarbonização. Para a população, aponta caminhos possíveis: o voto, o ativismo local e o consumo consciente.
O fim do mundo já está acontecendo, a gente tem que pensar como que podemos sair disso como Brasil.
Em meio à urgência e aos grandes desafios, as especialistas concordam: desistir não é uma opção. “É muito difícil dizer que chegamos ao vermelho e não há mais o que fazer. Não podemos simplesmente deixar tudo e dizer: ‘Vamos terminar de destruir’”, afirma Maria Clara Sassaki.
Há um consenso de que ainda é possível mudar de rota. Esse caminho passa por um novo equilíbrio — com políticas públicas robustas, engajamento inadiável do setor empresarial e ação consciente de cada indivíduo — para que o Brasil e o mundo possam, juntos, reescrever seu futuro e se desviar do abismo.

- Diretora de Conteúdo Digital e Transmídia: Bia Cioffi
- Coordenadora de Produções Originais: Renata Garofano
- Reportagem: Bianca Favero
- Edição: Daniel Fernandes
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