À beira da floresta e às margens do maior rio do planeta, parecia impensável faltar água limpa. Mas, até pouco tempo atrás, os povos indígenas do Parque das Tribos, em Manaus, viviam sem acesso à rede de abastecimento. A rotina era marcada por caminhadas até as cacimbas e baldes cheios de incertezas.
Quatro anos depois da chegada da água tratada, a lembrança desse tempo ainda é viva na memória da líder comunitária Eliza Sateré-Mawé.
“Eu lembro que tinha que vir pra cá às 7h da manhã, porque outras famílias também utilizavam. Muitas acordavam cedo para fazer os afazeres, e eu era uma delas. Na época, eu morava na rua Baré e precisava descer cedo para lavar roupa, lavar louça, dar banho nas crianças e terminar tudo antes das 10h, já que outras famílias também precisavam usar. A gente se revezava até que todos conseguissem utilizar a água — a única que tínhamos acesso — aqui nas cacimbas do Olho d’Água. Agora temos dignidade. A água chega dentro de casa”, conta.
Fundada em 2014, a comunidade localizada no bairro Tarumã, na zona oeste da cidade, reúne mais de 700 famílias de 38 etnias. A maior aldeia urbana da capital amazonense nasceu de uma luta por espaço e identidade, mas por muitos anos sobreviveu sem serviços básicos.
O Otaí, da etnia Dessano, que veio de São Gabriel da Cachoeira há três anos, se emociona ao falar da mudança: “Quando cheguei, já tinha água encanada. Para quem sempre viveu de improviso, isso é uma vitória”, comemora.
Conquista e novos desafios
A inauguração do sistema de abastecimento, em 2021, foi um marco. A concessionária Águas de Manaus, em parceria com a Prefeitura, levou rede de água potável a cada casa — um avanço que elevou a capital ao patamar de 99% de cobertura de abastecimento.
Mas, ao mesmo tempo em que a torneira se abriu, um novo problema se revelou. O esgoto, que não acompanha a mesma velocidade, ainda corre a céu aberto em boa parte da cidade — e no Parque das Tribos a realidade continua sendo a das fossas improvisadas.
A promessa é que a segunda etapa chegue até nós com o esgoto. Nós vamos continuar cobrando, porque não se trata só de infraestrutura. É saúde, é dignidade
Manaus ainda atrás no saneamento
De acordo com o Instituto Trata Brasil, Manaus avançou: em 2018, apenas 16% da população tinha coleta de esgoto; hoje são 33%. Ainda assim, a capital segue entre as 20 piores do país no ranking de saneamento básico. A falta de estrutura impacta diretamente a vida da população, com a propagação de doenças como diarreia, leptospirose, hepatite A e esquistossomose, além de agravar problemas de saúde infantil.
“Quando a gente fala de saneamento básico, estamos falando de qualidade de vida relacionada à saúde. Mas também da qualidade do ambiente em que essas pessoas estão inseridas. Do mesmo modo, quando há falhas, acabam ocorrendo impactos ambientais: produção de resíduos, contaminação do solo e do ar. Isso retorna para elas mesmas em forma de redução da qualidade de vida nesses espaços. Além disso, aumenta o risco de diversas doenças, como a leptospirose, e problemas ligados à qualidade da água consumida. Tudo isso agrava a saúde pública do estado, porque gera demandas que poderiam ter sido prevenidas. O esgoto sem tratamento gera doenças, contamina o solo e ameaça diretamente os rios amazônicos”, explica Vanessa Meireles, doutora em sustentabilidade pela UFAM (Universidade Federal do Amazonas).
A concessionária, por sua vez, tem uma meta ambiciosa: atingir 90% de cobertura até 2033. Até lá, comunidades como o Parque das Tribos seguem à espera.
“Com o crescimento da cidade, as áreas vão se regularizando, e isso passa a fazer parte do nosso planejamento anual. Hoje, temos 99% de abastecimento de água na cidade. Na área de esgotamento sanitário, queremos chegar a 90% até 2033. É acompanhar o crescimento urbano, e o saneamento sanitário está junto nesse desafio”, afirma Simone Dias, representante de responsabilidade da Águas de Manaus.
Água é vida: a chegada da dignidade ao Parque das Tribos
A rotina mudou: lavar as mãos com água limpa, agora acessível dentro de casa
Pressão política e esperança comunitária
Na Câmara Municipal de Manaus, o tema ganhou força. A Comissão de Água e Saneamento discute a elaboração do novo Plano de Saneamento Básico da cidade. O presidente da comissão, vereador Alan Campelo, destaca a participação de diferentes setores da sociedade manauara:
“Vão ter duas audiências públicas pra gente ver o melhor modelo para resolver definitivamente a questão, tanto da água quanto do esgoto de Manaus.”
A previsão é que o texto seja apresentado ainda este ano.
Com a Amazônia no centro das atenções do mundo, às vésperas da Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas de 2025 – a COP30, o Instituto Trata Brasil reforça:
“O grande desafio do município é buscar a universalização do acesso ao saneamento, para cumprir as metas estabelecidas pelo marco legal de universalização da água tratada e da coleta e tratamento de esgoto. Quando a gente olha os indicadores, vê que um dos maiores desafios está no avanço da coleta e do tratamento de esgoto. E isso é fundamental tanto para a preservação dos recursos hídricos quanto para garantir saúde e qualidade de vida à população. Saneamento é peça-chave para que o desenvolvimento seja sustentável e para que a floresta siga de pé”, afirma Luana Pretto, presidente-executiva da entidade.
Água é vida
Enquanto cobra o próximo passo, a comunidade indígena Parque das Tribos celebra cada vitória e reafirma seu vínculo com a preservação ambiental. Entre o som das maracas e a memória viva da floresta, Eliza resume o que mudou desde a chegada da água tratada. Em português e na língua Sateré-Mawé, sua voz ecoa a mensagem que atravessa gerações: “Água é vida.”
“O que nós queremos é que essa área seja preservada, porque esse local de história nos trouxe grandes benefícios. A água não serve apenas para trabalhos básicos, mas também tem uma utilidade espiritual, principalmente aqui, que é um lugar sagrado para nós, povos indígenas. É um espaço de purificação. Muitas vezes a gente vem, toma banho, molha o rosto… É como uma fonte da juventude: purifica, traz uma sensação de pureza, bênção e limpeza. Por isso precisa ser preservado”, conclui Eliza Sateré-Mawé.
Na Amazônia, falar de futuro é falar dela — da água. Seja para beber, seja para proteger os rios que alimentam a floresta e sustentam os povos que sempre estiveram aqui.

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