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Estúdio|Lumi Zúnica, do Núcleo Investigativo da TV RECORD

À margem: Amazônia Reprodução/RECORD

Setembro de 2010- Primeiro contato: lenda ou verdade?

Em 2010, fui ao Amazonas produzir uma reportagem sobre prostituição infantil no rio Autazes. Durante os almoços improvisados nas casas de ribeirinhos, o prato mais pedido era o espetinho de tambaqui ou pirarucu. Mas o que me chamou atenção foram os espetos: de madeira avermelhada, às vezes amarelada, maiores, sólidos e pontiagudos. Uns diziam vir das margens do Rio Negro, outros, que eram feitos por crianças.


A história parecia uma lenda local. Mas ao encontrar os mesmos espetos sendo vendidos no mercado municipal, decidi investigar. Era possível que fossem fruto de trabalho infantil? Nascia ali uma apuração que me levaria às profundezas da floresta e que, 15 anos depois, revisito em busca de uma resposta: o que mudou?

A travessia

Acompanhado do conselheiro tutelar Raimundo Carlos, da assistente social Sônia Brígida e da ribeirinha Luciele Santiago, seguimos em uma pequena embarcação pelo rio Apuãu até a comunidade de Lindo Amanhecer, no Igarapé do Mulato. Era setembro, tempo de seca. Após dez horas de navegação e longa caminhada, chegamos à casa de tábuas dos pais de Luciele, seu Jorge Paulino e dona Luci.


O entorno era desolador: o rio seco parecia um caminho de barro cinza; toras de madeira (matéria-prima dos espetos) estavam espalhadas pelo chão. A falta de luz, água e esgoto era compensada pela hospitalidade dos moradores.

Luciele, recém-viúva após o marido ser atingido por um raio, havia deixado os cinco filhos sob os cuidados dos pais para trabalhar como camareira em Manaus. Na casa, Joel (8), Naavi (6), Juliana (5), Giovane e a pequena Isabele (3) nos observavam entre sorrisos, curiosidade e histórias de infância ribeirinha.


Jantamos peixe assado, banana da terra e mandioca antes de dormir em redes, sob o luar amazônico.

Na manhã seguinte, seu Jorge me apresentou parte da família. Contou que viviam da produção de espetos, mas enfrentavam a repressão do Ibama, que apreendia o material e criminalizava a atividade. Sem alternativas de renda, a agricultura mal sustentava a família e a pesca era proibida na região das ilhas de Anavilhanas.

Naquele dia, registramos uma foto da família. Em 2025, voltaria a tirá-la. Desta vez, apenas com o casal e o neto Geovani. Os filhos cresceram e partiram. Mas a pergunta permanece: quantas dessas histórias ficaram no tempo e quantas continuam, invisíveis, à margem do rio?

Derrubando a lenda com seu Jorge e os netos

Quando ouvi falar que os espetos vendidos em Manaus eram feitos por crianças, achei que fosse lenda. Mas, ao chegar à comunidade de Lindo Amanhecer, percebi que a história era real.

Tem gente que acha que nós nem existimos aqui

Dona Luci, esposa de Jorge Paulino

Seu Jorge me levou ao rancho onde, com filhos e netos, produz espetos. O galpão simples, de chão batido, estava coberto por fiapos e serragem. Espetos já prontos se acumulavam nos cantos. Todos se sentavam em bancos com pedaços de borracha de pneu pregados, que serviam de apoio para desbastar a madeira com facas longas. As crianças manuseavam as varetas como se apontassem lápis gigantes.

O som constante das facas raspando madeira e batendo nas borrachas compunha uma espécie de sinfonia da floresta, feita por mãos pequenas e hábeis. Sabrina, uma das netas, me mostrou com orgulho sua técnica.

Milheiro de 300

Seu Jorge explicou: 30 espetos formam um maço; dois maços viram uma vara; cinco varas compõem um “milheiro”, ou seja, 300 espetos. O pagamento: R$ 4,00 por milheiro — valor que cai para R$ 2,50 na época das cheias.

A seca e o preço dos espetos

Com a seca severa, as casas da comunidade pareciam estar no alto de um morro, mas era o rio que havia recuado drasticamente. Subimos a longa escada do ancoradouro improvisado até um pequeno vilarejo: escola, posto de saúde, casas sobre palafitas, um campinho de futebol, um forno comunitário de farinha e o cheiro forte de peixe frito no ar.

Seu Manuel Pedro, inicialmente desconfiado, logo mostrou o rancho onde a família produz espetos. Ao lado de netos e netas, usava bancos simples, substituindo as borrachas de pneu por tocos de madeira. Desenvolveu sua própria técnica: apoiava o cabo da faca num pano amarrado abaixo do joelho.

Kitiane, de 9 anos, trabalhava em silêncio, habilidosa no desbaste da madeira. Luciane, de 11, mais tímida, mostrou a ponta afiada da faca que usava e contou que começava às 7h da manhã. O avô disse que ela só ajudava depois da escola, mas admitiu que nos dias sem aula, o trabalho começava cedo. Além de apontar os espetos, ela também cortava toras com um machado. Regiane, de 13 anos, era a mais velha das crianças no rancho.

Assim como Jorge Paulino, da comunidade vizinha, seu Manuel confirmou os preços: R$ 4 por milheiro de 300 espetos na alta da produção, R$ 3 na maior parte do ano. A venda é feita a atravessadores que passam a cada duas ou três semanas. Com toda a família envolvida, produzem até 9 mil espetos em 21 dias — o equivalente a R$ 120 por mês, ou cerca de R$ 40 por semana.

O “Regaton”

Salustiano, pai de Luciane e Regiane, vive no Apuãu há 45 anos com a esposa e sete filhos, todos envolvidos na produção de espetos. Ele reclama dos preços pagos pelo “regaton”, o atravessador que troca espetos por produtos.

A família ganha cerca de cem reais por semana, suficiente para comprar itens básicos como açúcar, café e bolacha. Na seca, um “milheiro” (300 espetos) vale quatro reais, trocado por um quilo de açúcar; já o café, mais caro, exige cinco “milheiros” para um quilo. O atravessador só vende se a produção for grande; caso contrário, entrega os produtos e a família fica endividada, presa a um ciclo sem saída. "A gente só trabalha com espeto porque não tem outra opção", resume Salustiano.

Dificuldades para gerar renda

Sem energia elétrica, atividades econômicas com máquinas são impossíveis. O gerador a diesel é caro: duas horas de luz consomem um litro de gasolina, que custa cerca de R$ 3,50.

Dona Luci destaca a falta de comunicação: sem telefone ou sinal, ficam isolados em emergências. “Já passamos por muita coisa difícil aqui e não temos como avisar ninguém", lamenta.

Tratados como bandidos

Num igarapé remoto, embarcações carregadas com milhares de espetos aguardam transporte até Manaus. Os tripulantes se sentam sobre os montes de madeira para levar a carga.

Seu Antônio explica que fazem o transporte à noite para fugir da fiscalização do Ibama, que apreende toda a mercadoria: “Já teve gente que se alagou no rio. Aqui a gente trabalha como bandidos".

São oito homens que vivem da produção e transporte clandestino, já que a agricultura não sustenta a região e não recebem ajuda do governo. Francisco Antônio, presidente da comunidade Nova Jerusalém, diz que os espetos, antes vistos como artesanato, foram proibidos pelo Ibama por suposta devastação da floresta, forçando os ribeirinhos à clandestinidade.

Luciele, filha de seu Jorge, relata ter tido 35 milheiros apreendidos e que tentaram, sem sucesso, recuperá-los. Para evitar perdas, transportam à noite e descarregam antes do amanhecer. “Não podemos vacilar, eles viajam à noite, a gente chega de madrugada para retirar a produção", diz Luciele.

Os espetos seguem para mercados no centro de Manaus.

Quando a fome força o trabalho precoce

Se não trabalharmos, inclusive com a ajuda das crianças, vamos passar fome

seu Jorge, com olhar preocupado

Os auxílios do governo são insuficientes para impedir que crianças contribuam na renda. Carlos Raimundo, coordenador do Conselho Tutelar, afirma que mostrar a situação das crianças é crucial para que as autoridades reconheçam o problema. Segundo ele, o Ibama reprime os produtores sem oferecer alternativas. Apenas uma em cada vinte famílias recebe a bolsa floresta, que exige parar de produzir espetos — algo quase impossível para quem depende dessa renda.

Além disso, o Conselho Tutelar não tem embarcações, dependendo de caronas para chegar às comunidades, o que dificulta o combate ao trabalho infantil e a proteção contra abusos.

Acidentes e extração da madeira

Seu Jorge já sofreu vários cortes, inclusive um ferimento profundo no cotovelo. Em Apuãu, acidentes são comuns, geralmente quando a faca escapa e fere as pernas, como as cicatrizes visíveis na esposa, dona Valderez.

Salustiano também já se machucou, e seu filho chegou a deslocar uma costela carregando madeira. Na seca, as toras são carregadas nas costas por longas distâncias; na cheia, ficam submersas para evitar apreensão pelo Ibama, antes de serem levadas à comunidade.

A extração da madeira

A produção começa na floresta, onde o ribeirinho procura árvores da madeira certa, que “parta” bem. Em 2025, registramos essa etapa (vídeo abaixo).

Após meia hora de lancha e caminhada pela mata fechada, encontramos um homem pronto para derrubar uma “ripeira”, uma das várias espécies usadas. Ele testa pedaços para garantir a qualidade da madeira antes de cortar.

O som da motosserra ecoa e a árvore cai em poucos minutos, deixando um silêncio pesado. O lenhador corta o tronco em pedaços de cerca de 30 quilos, que transporta em várias viagens até o barco para não sobrecarregá-lo.

Bandas, quartos, espetos e o “varal de inajá”

Os troncos são divididos em “bandas” (metades) e depois em “quartos”. Se necessário, cortam ainda mais, sempre com machados e por adultos devido ao peso. Quando as peças têm cerca de 40 cm, são cortadas em espetos da espessura de um dedo. Nessa etapa, adultos e crianças maiores trabalham juntos.

Espetos secando formam o "varal de inajá" Lumi Zúnica

Depois, toda a família participa da “fábrica”: raspar e afinar os espetos, além de apontar uma extremidade. Crianças de 7 a 14 anos usam facas adaptadas para facilitar o trabalho. Os espetos finalizados são secos ao sol sobre o “varal de inajá” — uma estrutura a cerca de um metro do chão — para evitar umidade, por pelo menos três dias antes da embalagem.

Ano 2025- O que mudou?

Quinze anos após a primeira visita percebi mudanças, nem todas sinais de progresso.

Entre os avanços estava a chegada da internet, biodigestores e placas solares. Também houve diminuição no número de crianças trabalhando. Em contrapartida não há saneamento básico ou é precário. Nas comunidades não há “ambu-lanchas” para socorro, falta combustível para os barcos de transporte escolar e a criminalidade aumentou drasticamente na região.

Pese haver diminuído, o trabalho infantil não desapareceu e é decorrente da falta de oportunidades de trabalho e de geração de renda para os pais.

Tanto faltam oportunidades que as crianças que conheci em 2010 emigraram, e as quem estão agora pretendem fazer o mesmo. Como eles mesmos dizem, “espeto não dá futuro para ninguém”.

Em 2010 fiz uma foto com seu Jorge Paulino, a esposa Luci, a filha Luciele e cinco netos na escadaria da casa. Desta vez, 2025, a foto só tem o casal e o neto Geovani, hoje adulto. Manuel Pedro de Souza e dona Valderez que na época rodeados de filhos e sobrinhas produziam espetos na sombra de uma árvore, agora só contam com a ajuda de um neto. Seu Salustiano infelizmente faleceu e as filhas Regiane, Lucinane a Valmir não estão mais na comunidade.

Assim como o rio, a vida seguiu seu curso para essas famílias. Filhos e netos se casaram e se mudaram em busca de oportunidades que a margem do rio não oferece. Mas no seu lugar outras crianças ocuparam os bancos de madeira onde os espetos são desbastados usando as mesmas navalhas afiadas.

Família dos senhor Jorge Paulino Lumi Zúnica

Relato da repórter Camila Busnello

Nas comunidades ribeirinhas, o tempo passa de forma diferente. A vida segue com muitas dificuldades e lutas diárias. O dia é corrido para as famílias. Não há espaço para o ócio. A ausência do Estado é evidente. O atraso é imenso.

As lanchas escolares, quando têm gasolina, atravessam as águas do rio Negro para buscar crianças espalhadas pelos povoados. Muitas estudam em uma escola da região, na comunidade do Apuãu, que se destacou durante a pandemia por ser uma das primeiras a oferecer aulas on-line entre os ribeirinhos. Outras, porém, abandonam os estudos e, assim, abrem mão da infância para trabalhar. Dependendo da necessidade da família, ficam em casa para ajudar na fabricação de espetos para churrasco — vendidos a atravessadores, que depois revendem nas grandes cidades, em lojas e boxes de mercados.

Enquanto isso, os pais, que precisam da ajuda dos filhos para sobreviver, lamentam não conseguir garantir um futuro melhor para eles. Desejam um destino diferente daquele que tiveram, mas acabam perpetuando a tradição de que a produção de espetos é a única fonte de renda possível.

As mulheres cuidam da casa, dos espetos e esperam pelos maridos, que entram na floresta amazônica em busca de árvores adequadas para a produção. Não é um trabalho fácil — longe disso. Eles carregam nas costas toras de madeira que podem pesar mais de 20 quilos, ao menos uma vez por semana.

Durante a reportagem, encontramos seu Jorge no meio do rio, em seu barco com motor comprado com o dinheiro dos espetos. Ele ia buscar dona Luci, sua esposa, em um povoado próximo — ela havia conseguido uma melancia. Uma extravagância para eles. A fruta veio de Manaus, encomendada por dona Luci. São 12 horas de navegação até chegar à casa dela. A última melancia que havia comprado estava sem gosto, e ela fez questão de reclamar com quem a trouxe. Também pudera: pagou R$ 25 pela fruta. Um valor que não dá para desperdiçar.

É por esses “luxos” que dona Luci e seu Jorge ainda produzem espetos, quando conseguem. E mesmo sem ter sempre à mão a fruta preferida — seja pela falta de dinheiro, seja pela seca ou cheia do rio —, ela fez questão de abrir a melancia e dividir com toda a nossa equipe.

Dona Luci e seu Jorge Lumi Zúnica

O documentário “À Margem: infância perdida na Amazônia” está disponível na plataforma PlayPlus e retrata crianças e adolescentes ribeirinhos do Rio Negro, a 100 km de Manaus, que produzem espetos de madeira com facas afiadas, enfrentando riscos e prejuízos escolares. A prática escancara a fome e a falta de oportunidades na Amazônia.

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Neste podcast exclusivo do Domingo Espetacular, a repórter Camila Busnello entrevista a ministra do Meio Ambiente e Mudança do Clima, Marina Silva.

  • Diretora de Conteúdo Digital e Transmídia: Bia Cioffi
  • Coordenadora de Produções Originais: Renata Garofano
  • Coordenadora de Arte Multiplataforma: Sabrina Cessarovice
  • Repórter Investigativo: Lumi Zúnica
  • Repórter: Camila Busnello
  • Diretor de Externa: Bruno Lima
  • Editora de Texto: Anna Karina Bernardoni
  • Chefe de Produção : Giselle Barbieri
  • Editora Chefe: Angélica Mansani
  • Editor Chefe: Bruno Chiarioni
  • Editor Chefe: Osmar Júnior
  • Editor de texto: Marcio Santos
  • Assistente de Direção Produções Originais: Thais Angelucci
  • Diretor Editorial e Projetos Especiais: Thiago Contreira
  • Diretor Integração de Jornalismo: Andre Basbaum
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