Todas as manhãs, Elisângela Benjamin se levanta e prepara café da manhã para os filhos. O ritual, repetido sem pressa, a transporta para a infância. Foi assim que aprendeu que a cozinha é mais do que um cômodo, é uma linguagem de amor — pequenos gestos que traduzem o cuidado. Um afeto silencioso que ela recebeu da mãe adotiva e, hoje, reproduz para Laura e Enzo.
A educação dos filhos carrega rastros da própria criação. Enzo, de 10 anos, sabe que brincar é importante, mas entende os compromissos dentro de casa. Em certos dias, cabe a ele recolher a roupa do varal, dobrar e guardar. Simples tarefas que constroem responsabilidade. Elisângela aprendeu isso cedo. O pai, militar, gostava de horários cumpridos, princípios seguidos. “Ele me ensinou a ser uma pessoa correta”, diz. Cresceu admirando a disciplina e o senso de justiça dele, carregando esses valores.
A história de Elisângela, ou Elis, como é chamada, com os pais começou cedo. Foi abandonada pela mãe biológica com um casal amigo e vizinho de maneira provisória. “A promessa da minha mãe era que ela iria para São Paulo estudar enfermagem e voltaria para me buscar”, conta. Nunca voltou.

Aos 6 anos, quando a adoção foi formalizada, Elis perdeu um irmão enquanto ele andava de bicicleta. Filho biológico do casal, o jovem morreu pouco tempo depois. O luto foi uma questão que precisou enfrentar desde muito nova — tanto com o seu, quanto com o dos pais. “Lembro de brincar com meu irmão, ele me protegia muito”, diz.
Aos 18 anos, foi atrás de suas origens e encontrou oito irmãos biológicos. Mantém uma boa relação com todos, mas a aproximação também trouxe reflexões. “Sempre tive uma vida boa, estudei em boas escolas. Mas não era sobre dinheiro, era sobre cuidado, valores, um lar estruturado. Meus irmãos não tiveram acesso a isso”, observa.

Mas um dos maiores desafios veio anos depois, quando Elis tinha 32 anos. Em maio de 2011, perdeu os pais em um intervalo de três dias. A mãe, Lourdes Benjamin, morreu no dia 20, vítima de uma embolia pulmonar após uma cirurgia. O pai, voltando do velório da esposa, começou a passar mal. Três dias depois, sofreu um infarto e não resistiu.
O choque a paralisou por instantes, mas as responsabilidades logo tomaram espaço. Como filha de militar, precisou lidar com uma burocracia sem fim. “Passei um mês resolvendo documentos, questões administrativas. Só depois que tudo estava pronto é que desabei”, lembra. Quando finalmente sentiu a dor em sua totalidade, já não havia nada mais a resolver.
O pai sempre temeu deixá-la sozinha. “Ele dizia que não queria morrer sem ver meu casamento”, conta. Mas quando Elisângela se casou com Clóvis, em 2013, já não havia mais a presença de ambos para a cerimônia. Apesar disso, ela construiu a família que sonhava.
Por que a adoção é mais difícil quando tardia?

Segundo dados do Governo Federal, no Brasil, 4.902 crianças e adolescentes estão disponíveis para adoção. Dentre eles, 79,2% têm mais de 6 anos. Historicamente, existe uma preferência pela adoção de bebês, mas esse cenário vem mudando. O juiz titular da Vara da Infância e Juventude de Guarulhos e assessor da Corregedoria Geral da Justiça de São Paulo, Iberê Castro Dias, explica que esse padrão tem sido desafiado, em parte, por iniciativas como o seu projeto “Adote um Boa Noite”.
“A dificuldade na adoção dessas crianças mais velhas decorre, principalmente, do sonho de exercer a maternidade ou a paternidade de forma tradicional: acompanhar os primeiros passos, ver a criança comer a primeira papinha. E não há nada de errado com isso, nem de antiético ou imoral”, pontua Iberê. “Mas, muitas vezes, as pessoas interessadas na adoção nem consideraram a possibilidade de adotar um adolescente ou uma criança mais velha. Quando conversamos com pessoas leigas, a ideia da adoção está muito associada à imagem de um bebê pequenininho.”
Iberê acredita que, ao trazer esse tema para reflexão, muitas pessoas percebem que adotar um bebê nem era exatamente um desejo, mas uma convenção social. “Às vezes, ao refletirem sobre isso, dizem: ‘Pensando bem, até prefiro adotar um adolescente ou uma criança no fim da infância’. Não quero ter que acordar de madrugada ou me preocupar.”
O juiz observa uma mudança significativa nesse comportamento nos últimos anos. “Atualmente, é comum pessoas chegarem aos abrigos e afirmarem que não querem uma criança recém-nascida, o que é exatamente o oposto do que acontecia no Brasil há alguns anos. Antigamente, era muito difícil conseguir a adoção de uma criança com mais de 2 anos.”
Para Iberê, fomentar essa reflexão é uma forma de solucionar um dos maiores problemas da adoção tardia no Brasil: a falta de informação e o receio do desconhecido. “Apresentar essa temática à sociedade é essencial para mudar o cenário”, conclui.

Os desafios para o outro lado da adoção
Roberta Lee Alcaide sempre sonhou em ser mãe. Com o marido, ambos engenheiros por formação, alimentava o desejo de adotar uma criança mais velha, alguém que pudesse ser sua companheira. A busca ativa os levou até Vitória, uma menina de 8 anos que já havia passado por duas tentativas de adoção frustradas. “Ela foi retirada da mãe biológica aos 4 anos, com os irmãos, devido a um histórico de abuso e negligência. A irmã mais nova ficou com o pai biológico, o irmão mais velho com a madrinha, e Vitória permaneceu em um lar institucional.”

O processo de aproximação foi delicado. “Nos primeiros dias foi fácil, como um início de namoro. Mas, conforme as rotinas e regras foram se instalando, os desafios apareceram”, lembra Roberta. A menina, marcada por experiências de rejeição, levou tempo para confiar nos novos pais. No começo, os chamava de “Tipapai”, uma mistura de tios e pais. Apenas depois de dois anos, começou a chamá-los de mãe e pai de forma espontânea. “A pandemia ajudou nesse processo, pois ficávamos mais tempo juntos em casa, criando laços. Foi nesse período que conseguimos eliminar as medicações psiquiátricas dela. Hoje, ela não toma mais remédios.”
A adoção transformou não apenas a vida de Vitória, mas também a de Roberta. Buscando alternativas para ajudar a filha, que tem deficiência intelectual leve e enfrentava desafios psicológicos, ela encontrou no instituto Supera - Ginástica para o Cérebro uma ferramenta poderosa. “Conhecemos a franquia e percebemos que não só poderia ajudar a Vitória, mas também muitas outras pessoas”, conta. Dois meses após conhecer a filha, o casal decidiu abrir sua própria unidade da franquia, que hoje faz parte do projeto social Supera Social, levando transformação para além das salas de aula.
Para Roberta, a adoção tardia é um recomeço. “Agora é como se ela sempre estivesse na nossa família, como tivesse nascido conosco”
‘A criança não é um brinquedo para ser devolvido’
A adoção tardia exige preparação, diálogo e compromisso. A psicóloga, psicopedagoga e psicomotricista Andrea Meire Andrea Monteiro enfatiza que não há uma “receita de bolo” para a adoção, independentemente da idade da criança ou adolescente. “Cada um tem suas próprias necessidades, sonhos e histórias.”
“A decisão de adotar tardiamente não é simples e deve ser muito conversada. A criança não é um brinquedo para ser devolvido caso não dê certo. Existe uma expectativa, uma situação de envolvimento emocional entre todas as pessoas envolvidas”, alerta a especialista.
Andrea ressalta que a adoção é uma oportunidade de conexão e amor para todos os envolvidos. Segundo ela, a “escuta ativa” e o acompanhamento psicológico para toda a família são ferramentas fundamentais para um processo mais harmonioso. “Deve ser considerado o que funciona para a sua família”, conclui.



- Diretora de Conteúdo Digital e Transmídia: Beatriz Cioffi
- Reportagem: Laura Margutti
- Edição: Thaís Sant'Anna
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