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2019, o ano que tivemos de estudar Direito para entender o noticiário

O STF, templo do juridiquês, esteve por trás de algumas das principais discussões do ano, como a segunda instância ou a ordem das alegações finais

Retrospectiva 2019|Marcos Rogério Lopes, do R7

Sessões do STF podiam ter legenda em português
Sessões do STF podiam ter legenda em português Sessões do STF podiam ter legenda em português

Data maxima venia, caríssimos juízes, mas está cada vez mais difícil entender o linguajar de vossas excelências.

Com discussões de extrema importância no Supremo Tribunal Federal (STF) e em outros tribunais do país, 2019 obrigou os brasileiros a entenderem Direito para acompanhar as principais notícias do ano.

Em vez de aproveitar a audiência para simplificar o falatório, os experts em leis empolaram ainda mais o discurso. 

Em novembro, por exemplo, o ministro do STF Edson Fachin votou a favor da aceitação das prisões após a condenação em segunda instância (foi vencido, a proibição ganhou de 6 a 5 no plenário). No meio de seu extenso monólogo, ele bem poderia ter dito, em quatro palavras, que “nenhuma pena pode retroagir”. Ou, em português mais claro ainda, que uma pessoa, já condenada, não pode ser prejudicada pela mudança da lei.

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Preferiu isto:

“Entretanto, tais posicionamentos visam assegurar que a prática de uma determinada conduta, considerada na data do fato pela jurisprudência majoritária como atípica, possa ser objeto de punição por parte do Estado, em razão de uma guinada in pejus do entendimento jurisprudencial consolidado no momento em que o ato foi praticado."

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Para quem passou da metade do parágrafo, vale a explicação de que ‘in pejus’ é parte da frase em latim “reformatio in pejus’, sentença usada para definir mudanças nas penas que alteram, para pior, a decisão de um tribunal.

Em favor do eruditismo cansativo, que na maioria das vezes parece pura enrolação dos cultos magistrados, o juridiquês às vezes se mostra útil, aliviando o que a forma coloquial deixa agressivo até demais.

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O presidente Jair Bolsonaro tentou traduzir a expressão “excludente de ilicitude”, que nada mais é que a não aceitação de processos contra policiais que vão além dos limites durante o serviço, e deixou claro que há sentido na opção pelos termos técnicos.

"[O policial] agiu, trabalhou, houve algo de errado? Responde, mas não tem punição. Alguns falam: 'Você quer dar autorização para o policial matar? Quero, sim'”, disse Bolsonaro.

Pode-se questionar a opinião do presidente, mas não sua clareza.

Foi um ano em que os ligeiramente entendidos no assunto discutiram legislação e no qual até os advogados precisaram se atualizar. Descobrimos que era um erro crucial nos processos a ordem das alegações finais, com a discussão sobre a segunda instância incorporamos ao vocabulário termos como transitado em julgado, aprendemos siglas como UIF, antigo Coaf, e ganhamos o direito de chamar de criminoso quem dá calote no ICMS.

A seguir, a pretensiosa tentativa de traduzir termos ou temas que dominaram o notíciário jurídico de 2019:

- Segunda instância

Quando um sujeito comete um crime no Brasil, cabe a um juiz, com base na investigação, considerá-lo culpado ou inocente. Essa fase é a da chamada primeira instância. O condenado pode apelar a um Tribunal Regional (segunda instância) e, se a pena for mantida, a cortes superiores, como STJ ou STF.

Como a Constituição brasileira diz que ninguém pode ser considerado culpado até o fim do processo (trânsito em julgado), se houver espaço para qualquer tipo de recurso, a prisão como pena é proibida.

Em 2016, no entanto, o STF mudou a regra, liberando o encarceramento após a segunda instância, com o objetivo de dar mais agilidade à Justiça, pressionada com as condenações da Operação Lava Jato.

A mudança deu argumentos a advogados de defesa e deixou juristas do país malucos com a flexibilização de uma norma constitucional.

Pressionado, o STF voltou a discutir a tese em 2019 e anulou o que ficou decidido em 2016. Desde então, as prisões só são permitidas após o fim de todo o processo.

Se o STF é o órgão máximo da Justiça, não é possível questioná-lo, ok. Em outro país, talvez, mas aqui no Brasil deputados e senadores, agora, tentam mudar a lei para novamente admitir cadeia após a segunda instância.

Lula foi condenado somente até a segunda instância, pelo processo relacionado ao apartamento no Guarujá. As idas e vindas do STF o levou ao xilindró em 2016 e à liberdade em 2019, jogando gasolina na fogueira da polarização nas duas vezes.

- Alegações finais

O mesmo Lula também foi citado em outro debate interminável do STF, que determinou que um erro na ordem das alegações finais deveria anular inúmeras sentenças da Lava Jato.

Um dos principais méritos da força-tarefa da Lava Jato foi convencer acusados de corrupção a contarem mais detalhes de seus crimes, e principalmente entregarem outros envolvidos. De preferência, peixes maiores no esquema da maracutaia. Pelo acordo, a Justiça oferecia redução da pena e outras vantagens, num procedimento que leva o nome de delação premiada.

Se ela se tornou o grande trunfo da operação, foi responsável também por uma de suas maiores derrotas.

Os advogados de defesa de réus condenados acharam uma falha no final de processos em que apareciam os tais delatores.

Por lei, ninguém pode ser acusado de nada em um processo sem o direito de se defender em seguida. E isso acontecia em casos da Lava Jato nos quais o período das alegações finais ocorria simultaneamente tanto para os delatores quanto para os réus acusados.

Criou-se a brecha gritada pelas defesas e aceita pelo ST,F, que sugeriu que os casos voltem à etapa em que ocorreu o erro jurídico: antes da condenação em primeira instância.

Virou regra, mas, claro, maleável em terras brasileiras. O caso de Lula no sítio de Atibaia, por exemplo, não só não voltou para a primeira instância como ganhou nova condenação do Tribunal Regional Federal da 4ª Região.

- Excludente de ilicitude

O nome é horrível, mas é fácil entender porque colocaram no artigo 23 do código penal essa possibilidade. De forma simples, exclui-se (excludente) a existência de crime (ilicitude) quando há a clara necessidade daquele ato com o intuito de se realizar um bem que o justifique.

Mastigando um pouco mais. Todos sabemos que é proibido quebrar o vidro de um carro. Seria um crime de vandalismo contra uma propriedade particular, mas ninguém terá que responder pelo ato se tiver feito isso para salvar uma criança presa há horas dentro do veículo, em situação clara de risco à vida.

Bolsonaro defende a massificação da utilização da regra também para ações policiais, e enviou um projeto de lei ao Congresso com esse objetivo. Baseando-se na ideia de legítima defesa, citada na lei, o governo tenta evitar que os agentes tenham que se defender ao matar um bandido, por exemplo, caso ele represente um risco à vida dos homens da lei.

Coaf vira UIF e o que já era confuso piorou

Existia um departamento dentro do Ministério da Fazenda que tinha como função detectar transações bancárias e fiscais suspeitas. Ao perceber anomalias, os dados eram enviados a órgãos de investigação, como o Mnistério Público (MP), que buscava novos indícios para processar os envolvidos. Seu nome era Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf).

Veio Bolsonaro e o Coaf virou UIF (Unidade de Investigações Financeiras). Mais que isso, o órgão foi para o Banco Central, sob a alegação de que ficaria mais próximo das investigações.

E por que o STF entrou nessa história? Por que Dias Toffoli, presidente da Corte, proibiiu que órgãos fiscalizadores como o Coaf enviassem dados a órgãos investigadores como o MP, parando processos como o de Flavio Bolsonaro, filho do presidente da República.

Mas tudo, claro, é coincidência. Ele só questionava, justificou Toffoli, a autonomia desses órgãos: se estaria correto ou não enviarem dados sigilosos diretamente aos investigadores.

O Supremo se reuniu para discutir a questão e – vejam só! – decidiu que os órgãos de fiscalização deveriam fiscalizar, e depois de encontrarem erros no sistema, enviá-los a departamentos de investigação, que precisavam dos dados do Coaf, ou UIF, para iniciar os inquéritos.

ICMS e a apropriação indébita

Apropriação indébita = ficar com algo que não é seu. Por que quem escreveu a lei não usou o termo indevida em vez de indébita? Porque era um juiz que não sabia falar simples ou porque a graça do Direito é transformar tudo em um código só acessível aos doutores que se destacam da reles população?

O Supremo decidiu, em dezembro, que os comerciantes que recolhiam (poderia ser recebiam? Poderia, sim) o valor correspondente ao ICMS (Impostos sobre Circulação de Mercadorias e Serviços) de seus clientes e não o transferiam ao Estado estavam cometendo crime.

Até então, segundo o código penal brasileiro, não era crime ser caloteiro no Brasil. Com exceção das pensões alimentícias, ninguém poderia ser preso por ter uma dívida. As punições não passavam de multas, sanções ou advertências.

Entidades como a Fiesp (Federação das Indústrias do Estado de São Paulo) ficaram revoltadas com a criminalização da dívida do ICMS. Como assim impedir que os empresários fiquem com o dinheiro que não era mais deles? 

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