Em pleno 2020, ainda é possível ficar frente a frente com um escravo. No Brasil.
O homem que vamos chamar de José não quer mostrar o rosto. Se sente envergonhado pelo que viveu em um passado recente e teme represálias. Aos 33 anos, nunca terminou o ensino fundamental. Nasceu no Maranhão e foi em busca de uma vida melhor no Pará. Desempregado, sem conseguir sustentar a mulher e o filho, de 8 anos, aceitou um emprego de carvoeiro em dezembro de 2018.
3 meses de escravidão transamazônica trabalho escravo
José estava cansado da incerteza dos “bicos” e decidiu que era suficiente receber entre R$ 200 e R$ 300 por mês para trabalhar todos os dias em uma carvoaria de Tucuruí (PA).
Foi lá que ele e mais dez pessoas, oito delas contratadas em Tomé-Açu, cidade ao norte do estado, por um “gato”, nome dado a aliciadores de mão-de-obra escrava, se dividiram nas tarefas de encher e esvaziar as fornalhas.
José tinha “sorte” por morar em Tucuruí e poder voltar para a casa depois do expediente. “Sorte” que o resto do grupo não tinha. Os colegas dele eram obrigados a dormir em um barraco de lona, sem energia elétrica e sem banheiro. A água que consumiam vinha de um poço. Não bastassem as condições desumanas, o dinheiro para gasolina usada na motosserra saía do bolso dos próprios trabalhadores.
Foi inclusive usando este tipo de equipamento que um deles acabou cortando um dedo. Sem acesso a um transporte, foi andando até o posto de saúde mais próximo, a 10 quilômetros dali. Chegando lá, não encontrou atendimento. A solução foi improvisar, enfaixando a mão com um pedaço de pano e depois ainda retornar ao trabalho.
Esta cena ilustra uma entre as muitas irregularidades apontadas nos depoimentos dos trabalhadores à Justiça Federal. O valor da comida fornecida no local e até mesmo a passagem de ônibus paga para levar os trabalhadores de Tomé-Açu até Tucuruí eram descontados dos pagamentos. José e seus colegas eram vítimas de trabalho escravo.
O perfil do maranhense é comum entre a maioria dos resgatados por auditores fiscais do trabalho em locais com condições degradantes pelo país. Segundo números da Secretaria de Inspeção do Trabalho, só em 2019 foram libertadas 1.056 pessoas. José é uma delas.
Foram três meses até os fiscais do Ministério Público do Trabalho aparecerem. Ele conta que sabia que o estabelecimento era irregular e que não teria nenhum direito garantido em carteira. “Foi 'precisão' mesmo. ‘Tava’ parado e me chamaram. Único jeito que tinha era ir pra lá."
Se a vida dos 11 trabalhadores era degradante, a de Leidinaldo Teixeira Santiago, dono dos 30 fornos, parecia bem mais confortável. Segundo os depoimentos, ele raramente ia até à carvoaria. Quando aparecia, chegava a bordo de uma caminhonete importada. Leidinaldo não compareceu às audiências em juízo. A Justiça também não conseguiu localizá-lo.
Até hoje, nenhum dos trabalhadores resgatados recebeu um centavo.
Na fazenda Marivete, nome do local arrendado por Leidinaldo, não existe mais carvoaria e ninguém na cidade sabe do seu paradeiro. No dia da operação, apenas o gerente estava no local: Iranez Viana de Carvalho, conhecido ironicamente como "Mixaria".
Assim como José, a maioria dos resgatados não tem muitas perspectivas. Dados do Observatório da Erradicação do Trabalho Escravo e Tráfico de Pessoas indicam que 57% dos municípios onde nasceram os trabalhadores resgatados, entre 2003 e 2017, possuem pelo menos um terço de seus habitantes vivendo em domicílios nos quais nenhum morador tem ensino fundamental.
Tomé-Açu, de onde veio a maior parte dos colegas de José, tem menos de 3% de redes de esgoto e vias urbanizadas na cidade, segundo dados do IBGE.
Trabalho escravo no Brasil Transamazônica
O advogado e representante de trabalhadores rurais José Batista Gonçalves Afonso diz que um dos legados da implantação do projeto da rodovia Transamazônica foi a quantidade de trabalhadores escravos no sudeste do Pará.
A rodovia nunca concluída e que anunciava a chegada do progresso não entregou o prometido. Ele lembra que o slogan da época, “terra sem homens para homens sem terra”, trouxe milhares de pessoas cheias de esperança pra cá.
Como grandes extensões das melhores pastagens já estavam ocupadas por fazendeiros que integravam o projeto de pecuária ostensiva, muitos trabalhadores acabaram literalmente na beira da estrada. Alguns decidiram ocupar terras públicas.
“A outra alternativa era procurar emprego nessas (grandes) fazendas. A prática destas fazendas, muitas vezes, era a de trabalho escravo. A região se transformou não só em palco de graves conflitos pela posse da terra, mas palco dos principais casos de violação trabalhista”, diz Afonso.
Ainda segundo dados do Observatório da Erradicação do Trabalho Escravo, entre 2003 e 2018, 73% das vítimas resgatadas trabalhavam no setor agropecuário; 54% eram pretos ou pardos e 85% não completaram o ensino fundamental. Cerca de 22% eram originários do Maranhão, mesma porcentagem do estado com o maior índice de resgatados, o Pará.
José mora em uma pequena casa com reboco ainda por fazer e sorri timidamente quando fala do futuro: “Meu sonho é não sonhar alto, não. Sonhar baixo, ter minhas coisinhas, não faltar nada pra minha família." Hoje, ele voltou a sustentar a família com "bicos".
O Maranhão de José é líder entre os estados com o maior número de pessoas vivendo em extrema pobreza no Brasil: um em cada cinco maranhenses vive nessa condição. Ele diz que não pretende voltar para sua terra natal. Seu objetivo agora é plantar em um terreno dado pelo sogro.
Para as carvoarias, ele também garante que não retorna. Oferta, no entanto, é o que não falta. “Já me chamaram um bocado de vezes, mas não vou, não."