No céu, aviões em voos de reconhecimento. Em terra, tratores rasgam a floresta e abrem passagem. Em meio aos trabalhos de engenharia, índios assustados, correm de um lado para o outro. Até ali, eles viviam isolados na Amazônia.
"O avião vinha e voltava, né? Vinha e voltava. Nós não ‘sabia’ o que era aquilo ali."
O relato é do cacique Manoel Tenharim. Ele resgata na memória as imagens de quando ainda era criança, no início dos anos 1970. A Transamazônica chegava à área habitada pela tribo dele.
"E quando veio a zoada de máquina, que vinha derrubando tudo esse mato aí, todo mundo ficou preocupado. A gente se escondia. Corria tudinho."
A estrada cortou a terra indígena ao meio. E com os homens brancos, chegaram também doenças.
"Malária, sarampo, catapora, ferida, é tudo, tá entendendo? Perdi muito. Muito. Meus tios morreram tudo. Minhas tias, minhas irmãs, tá entendendo? Meu irmão. Morreu um bocado. Criança então, morria igual galinha quando pega vírus, assim. Morre tudo. Três, quatro por dia."
Cinquenta anos depois, os Tenharim ainda brigam na Justiça em busca de uma compensação milionária do Estado brasileiro. A indenização pode chegar a R$20 milhões.
Até 2013, a cobrança dos índios vinha de outra forma. Os motoristas que viajavam pela Transamazônica no trecho entre Apuí e Humaitá, no Amazonas, eram obrigados a parar num pedágio improvisado, armado pelos Tenharim. Ao menor sinal de resistência em pagar pelo direito de passar na área indígena, os carros eram imediatamente cercados pelos jovens guerreiros das aldeias. Nossa equipe presenciou esta cena quando gravava o documentário sobre os 40 anos da Transamazônica, em 2010.
Dez anos depois, estamos de volta à BR-230 e o pedágio já não existe mais. A cobrança forçada foi extinta depois da chamada “Batalha de Humaitá”, cidade banhada pelo rio Madeira. É a penúltima parada antes do fim da Transamazônica.
Em frente à sede da Funai, sete anos depois da revolta da população, carcaças de uma embarcação e carros queimados ainda estão expostos. São as marcas dos dias mais tensos nesta região. O desaparecimento e morte de três moradores provocaram uma intensa revolta entre comerciantes e moradores de Humaitá contra os índios Tenharim.
O clima de confronto chegou ao pico depois de uma sucessão de episódios violentos. Em dezembro de 2013, o cacique Ivan Tenharim morre num acidente de moto na Transamazônica. Dias depois, três homens que viajam pela BR-230 no mesmo carro somem perto da área indígena. Os Tenharim são apontados como culpados pelo crime.
"Eles queriam vingar a morte do cacique deles. O que eles fizeram na verdade foi uma vingança com três pais, três homens de família e totalmente inocentes de tudo. Totalmente inocentes. Eles não tinham nada a ver com isso. Eram homens de bem, trabalhadores, inclusive homens que ajudavam eles." O desabafo vem da técnica de enfermagem Célia Lucia dos Santos Leal, esposa de Aldeney Ribeiro Salvador, uma das três vítimas.
Luciano Ferreira Freire e Steff Pinheiro também estavam no lugar errado, na hora errada. Os corpos foram encontrados só em fevereiro de 2014, numa cova em uma das aldeias dos Tenharim. A Polícia Federal prendeu cinco índios, considerados suspeitos. Mas eles foram soltos e, até hoje, não foram julgados.
"No fundo do meu coração, eu acho que os índios na verdade eles são muito protegidos por lei, entendeu? Por isso que não houve justiça. Porque se fosse um de nós, brancos, a justiça seria bem severa.", diz Célia.
Ariandra Delgado, de 16 anos, não consegue conter o choro enquanto conversa com a nossa equipe. Ela é filha de Luciano. Tinha 9 anos quando o pai foi viajar e nunca mais voltou. “Ele faz muita falta. Eu não consegui superar a morte dele ainda."
A adolescente reclama que a mobilização durante o período de comoção acabou e agora, em 2020, ninguém fala sobre a morte dos três. Frustrada, não esconde o sentimento de raiva pelos índios. "Aí, a gente passou pelas aldeias deles tudinho. Eles tavam tomando banho no rio. Eu chorei muito nesse dia."
O cacique Manoel Tenharim era cunhado do cacique Ivan, morto no acidente de moto. Nas aldeias, falar sobre o assassinato dos três homens é tabu. "Isso aí é que ninguém sabe mesmo”.
Ele atribui a reação dos moradores de Humaitá a outro motivo."(Eles) têm ódio da gente por causa da terra. Porque a terra nós ‘defende’ mesmo. É por isso que eles têm ódio de nós”, justifica.
O cacique ainda diz que se a indenização pela construção da Transamazônica não for paga em breve, a liderança dos Tenharim pensa em reativar o pedágio clandestino que tinha na BR-230.
Se isso acontecer, moradores de Humaitá prometem reagir e organizar uma nova revolta. Seria a reprise de um episódio doloroso para indígenas e a população de brancos.
Quem já sofreu muito em meio a este conflito, como Célia, prefere o caminho da lei. “Eu não quero vingança. Eu quero justiça”.