“O nordestino que migrou para a Amazônia foi selecionado pelo Incra, que o entrevistou para saber de sua disposição. Aprovado para a colonização da Transamazônica, ele sabe que receberá casa, dois hectares de terra roçada e mais cinco salários mínimos (...) O colono e sua família não estão sós na vastidão da Amazônia.”
Era neste tom de promessa que o vídeo de propaganda do governo militar em 1971 anunciava ao país a colonização da maior floresta tropical do planeta. Esta mensagem de vida nova impactou profundamente a família de José Pereira de Miranda, conhecido na região de Brasil Novo (PA) como “JP Miranda”.
Depois de vender a roça que tinha no Espírito Santo, a família de 25 pessoas, junto do jegue que os ajudava no plantio, se espremeu durante oito dias de viagem dentro da caçamba de um caminhão. O agricultor, hoje aos 63 anos, diz que lembra “como se fosse agora” do dia 15 de setembro de 1975, o dia da chegada. “Demos uma volta na maior ânsia para conhecer (a propriedade).”
JP conta que o sonho começou a desmoronar logo no início. O primeiro espanto foi com a infestação de “pium”, também conhecido como “borrachudo”, mosquito típico da região. Logo em seguida, veio a decepção com a agrovila, sede do povoado criado pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). Ele lembra que havia apenas um poço para a comunidade inteira de trabalhadores vinda de diversas regiões do país. “De manhã e à tarde parecia a fila do INSS (para pegar água)”, recorda.
O serviço de saúde era outro problema. “Tinha o prédio, mas não tinha médico. Nem enfermeiro, nem nada”, conta. Na área da educação, poucos professores resistiam ao clima inóspito. “Tinha a escola, mas de 90 em 90 dias os professores não aguentavam.”
Foram poucos os que tiveram coragem de se manter após a decepção inicial. Em 1979, apenas 7.674 famílias tinham se instalado ao longo da rodovia Transamazônica. O plano inicial do governo falava em 100 mil. A família de JP Miranda foi uma dessas que resistiu mesmo com as dificuldades.
Ele lembra que a publicidade da época também floreava a real situação da Transamazônica. “Tudo era diferente. Quando chegamos aqui, quatro quilômetros pra cá e quatro quilômetros pra lá de Altamira eram asfaltados. Depois caía no poeirão no verão e no lamaçal no inverno. Aí que a ficha foi cair. A estrada asfaltada que a gente via nos jornais era aquele pedaço de chão (de Altamira). Ali que foi feito uma divulgação da Transamazônica asfaltada”, afirma.
O tempo passou e a principal cidade da região cresceu. Hoje, Altamira se tornou um polo econômico. O município, que em 1970 tinha 15 mil habitantes, atualmente tem 115 mil moradores. A explosão populacional cobrou seu preço: Altamira tem forte presença de facções criminosas e, de acordo com dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), possui a segunda maior taxa de homicídios do país (133,7 homicídios para cada 100 mil habitantes).
O mestre em agricultura familiar e ambientalista Tarcísio Feitosa da Silva, vencedor do Prêmio Goldman em 2006, considerado o prêmio Nobel ambiental, nasceu na região de Altamira e conhece bem o processo de colonização na região. “Eu vim conhecer asfalto depois dos 30 anos”, diz.
“Os conflitos na Amazônia são latentes, você tem vários conflitos. Na década de 70 foi exatamente isso: levar pessoas para uma área que não era ‘agricultável’", conta.
Foram décadas de dificuldade. JP Miranda se recorda que o asfalto só chegou onde ele vive em 2010. Antes, os problemas de deslocamento eram tão grandes que até mesmo animais silvestres chegavam a virar alimento. “Tivemos época de comer macaxeira e macaco cozido. Sobrevivia da maneira que dava pra sobreviver.”
Ministro da Fazenda entre 1970 e 1974, Antônio Delfim Netto, hoje aos 92 anos, é um dos poucos que lembram como foi o projeto da Transamazônica sonhado pelo governo da época. “A Transamazônica não teve projeto, não teve nada. Foi uma decisão intuitiva (do presidente Médici). Abriu-se aquilo, inclusive, acreditando que eram terrenos extremamente férteis. E depois verificamos exatamente o oposto”, afirma.
Apesar da ressalva, Delfim Netto defende a iniciativa do governo da época e diz que há muitos mitos sobre a Transamazônica. “Aquilo foi uma decisão de um grande presidente. Um homem realmente muito correto e muito preocupado com o bem-estar da sociedade, da população.” O ex-ministro fala que não se arrepende de ter participado do plano, feito de acordo com as informações disponíveis à época. “Com o conhecimento que existia em 1970, a decisão foi a correta. Hoje, quando o futuro virou passado, é muito fácil dizer.”
Não foi uma jornada fácil para quem insistiu e enfrentou os desafios da Transamazônica. Mas JP garante que os piores dias agora ficaram no passado. “Eu choro quase todo dia, mas é de alegria. Me dá uma alegria tão grande quando eu pego esta moto e saio daqui para Brasil Novo. Eu vou devagar, contemplando os passos que eu ajudei essa região a dar”, conta orgulhoso.
Para o colono que conseguiu fincar raízes, nada veio fácil. "Não é à toa que hoje nós temos aqui... Eu chamo de minha humilde residência! Não é à toa que nós temos energia aqui vindo de Tucuruí. Isso custou muito sacrifício”, ressalta JP.
Para ele, aquela terra cheia de promessas vazias virou realidade, suada e de muito trabalho, mas que ele não troca. “Amo São Paulo, amo Belo Horizonte, amo Rio de Janeiro, amo Vitória... Mas a minha terra do coração se chama Transamazônica.”