Enterro de vítima do acidente com césio-137 em Goiânia, que completa 34 anos nesta segunda
ArquivoHá exatos 34 anos, um acidente nuclear mudou a vida e a rotina de quem morava no centro de Goiânia. Os relatos iniciais eram de que algumas pessoas tiveram um mal-estar ao consumir refrigerantes. No entanto, nos dias seguintes a cidade descobriu que um material extremamente radioativo e nocivo para o corpo humano tinha se espalhado por diversos bairros da região. Se tratava do césio-137, até então desconhecido da população brasileira, mas que causou no país o segundo maior acidente nuclear do mundo – ficando atrás apenas da explosão do reator da Usina de Chernobyl, na antiga União Soviética.
O caso teve início em 13 de setembro de 1987, após os catadores de recicláveis Roberto dos Santos Alves, na época com 22 anos, e Wagner Mota Pereira, com 19, entrarem no prédio de uma clínica abandonada e recolher parte de uma máquina de radioterapia desativada. O equipamento continha 19,62 gramas de césio, que foi suficiente para contaminar 6 toneladas de matéria, entre casas, carros, animais, plantas, pessoas e o solo. A cápsula com o césio, depois de aberta, foi levada por Roberto e Wagner para o ferro-velho de Devair Alves Ferreira.
No local, o césio se espalhou. Além de Devair, os irmãos dele, Ivo Alves e Odesson Alves Ferreira tiveram contato com a substância. Ivo, encantado com o brilho azul do césio, levou para casa e passou o material radioativo no chão para brincar com a filha, Leide das Neves, de apenas 6 anos. A menina, que sonhava em ser modelo, foi a primeira vítima do acidente. Antes de morrer, ela teve o cabelo raspado, procedimento comum para tentar descontaminar atingidos por radiação. Ivo e Devair morreram anos depois – o primeiro de enfisema pulmonar e o segundo de cirrose.
Apaixonado pela esposa, Maria Gabriela Ferreira, Devair colocou o material incandescente em volta do pescoço dela, simulando o colar que sonhava em comprar para mostrar o quanto a amava. Dias depois ela começou a apresentar os sintomas da contaminação, como tontura, enjoo e diarreia. Maria não resistiu e faleceu no mesmo dia de Leide, em 23 de outubro, ambas internadas para descontaminação.
Ao R7, Odesson, o irmão sobrevivente, lembra que, em outubro daquele ano, quatro pessoas morreram por contato direto com o césio. Ao todo, de acordo com registros oficiais, 249 pessoas foram acometidas pela radiação liberada pelo material. O governo de Goiás reconhece quatro mortes causadas diretamente pela radiação e outras 12 ao longo das últimas três décadas sem ligação direta com a exposição. No entanto, um levantamento feito pelo Ministério Público de Goiás, em conjunto com as associações ligadas ao tema, dão conta de 66 mortes e mais de 1,4 mil contaminados.
Odesson Alves Ferreira mostra lesões causadas pelo contato com o césio
Arquivo Pessoal“Muitas das pessoas que morreram foi por câncer. Mas não temos certeza quais foram por conta do acidente. Eu fiz vasectomia logo depois do acidente. Tinha medo de que tipo de criança poderia gerar. Estou bem, fora as sequelas, mas ainda tenho medo do que pode acontecer. Se eu pudesse fazer um apelo, pediria que tivessem mais respeito, mais cuidado com as coisas perigosas. Aquele aparelho que salvou muitas vidas também tirou muitas vidas", diz Odesson.
Ele carrega as marcas da tragédia no corpo. Além de várias lesões, ele tem uma marca na mão esquerda, que surgiu após ter tocado o material. Também perdeu parcialmente um dedo da outra mão. Temendo mutações genéticas em seus descendentes, ou problemas de formação ou intelectuais, Odesson realizou vasectomia para não ter filhos. “Isso não acabou lá, pois ainda temos muitas dúvidas. Será que os sobreviventes do acidente estão livres de doenças, como o câncer, que é o que a radiação costuma provocar?”, questiona.
Preconceito
Mais de três décadas depois, os sobreviventes da tragédia que se abateu no coração de Goiás lutam contra o preconceito, vivem sob estigma, abandono das autoridades e medo. “A maioria foi embora. E quem ficou, a cada dia que passa, fica mais esquecido. Até hoje não sabemos o que acontece dentro da gente que ficou exposto. Parece que nunca vamos saber.” O desabafo é da goiana Suely Lina de Moraes, 63 anos, vítima do grupo 2, que contempla os que foram contaminados indiretamente pelo césio. Ela ainda mora no local.
Suely de Moraes, uma das vítimas do césio em Goiânia
Arquivo PessoalTodas as regiões atingidas passaram por descontaminação e os resultados da exposição resistem apenas na memória dos envolvidos e nos problemas de saúde que permanecem no corpo de quem teve contato com o material ou com a radiação liberada por ele (veja abaixo vídeo sobre os efeitos da radiação no corpo humano).
Presidente da Associação das Vítimas do Césio-137, Suely reclama da falta de estudos das consequências do acidente. Por isso, por conta própria, ela mapeou a área e detectou 25 vítimas que desenvolveram câncer, o que ela acredita ter relação com a radiação. “É um número alto. Mas é necessário que as autoridades vejam isso com profundidade. O relógio está correndo porque as pessoas estão morrendo e, com elas, são enterradas as informações necessárias para os estudos.”
O que já se sabe é que não existe mais risco para os atuais moradores e a região é monitorada. A ciência ainda tenta entender os efeitos da radiação nos sobreviventes e seus descendentes. Um estudo internacional traz boas perspectivas para as famílias afetadas. A pesquisa analisou o DNA dos filhos de sobreviventes de Chernobyl, nascidos entre 1987 (um ano após o acidente) e 2002.
“No nosso processo natural evolutivo, sempre há mutações novas que passam para as próximas gerações. O que se buscou entender é se as mutações causadas em um pessoa exposta à radiação poderiam afetar os filhos e filhas, levando a uma maior carga de mutação para a próxima geração”, explica o professor Leandro Machado Colli, da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP) da USP, um dos pesquisadores à frente do estudo.
A constatação foi de que os descendentes de quem teve contato com a radiação não desenvolveram as chamadas mutações germinativas acima do esperado. “Os filhos desses pais, em que pelo menos um foi exposto à radiação, não tiveram mais mutação do que já se encontra na população em geral”, afirma Colli. Cerca de 100 famílias foram avaliadas no estudo direcionado às vítimas do Chernobyl. A pretensão, agora, é repetir as técnicas do estudo em Goiânia.
Para Colli, apesar de serem análises de eventos passados, os dados servem de base não só como resposta aos sobreviventes, mas auxiliam a saúde pública em caso de novos acidentes. “As informações ajudam a prever, orientar e conversar sobre o que pode ser feito em eventuais acidentes envolvendo radiação.” O pesquisador destaca, por exemplo, como a falta de dados afetou a vida de vítimas de eventos passados. “Muitas pessoas deixaram de ter filhos porque ficaram com medo dos efeitos nas crianças, de nascerem doentes, desenvolverem câncer. Isso também é um sofrimento causado pelo acidente e o que se tem de dados hoje é que as chances de isso acontecer são pequenas.”
À época do acidente, os três filhos de Suely eram crianças e cresceram com medo de passar as consequências da exposição à radiação para as próximas gerações. “Hoje, tenho cinco netos saudáveis. Mas não foi uma decisão fácil para nenhum dos filhos. O medo sempre vai nos acompanhar enquanto não tivermos estudos. Ninguém sabe qual vai ser o impacto para a criança, se ela vai nascer com problema ou se isso tudo vai refletir nas próximas gerações. Então cada iniciativa que nos traga alguma resposta é valiosa e traz conforto”, diz a vítima.
Em busca de informações
O médico Antônio Faleiros Filho, que era secretário de Saúde de Goiás à época do acidente, conta que até mesmo identificar a causa do adoecimento das pessoas foi difícil inicialmente. “A informação inicial era de que algumas pessoas estavam passando mal por tomar um refrigerante. Isso chegou a ser divulgado por um canal de televisão. Mas percebemos que não havia sentido passar mal por conta disso. Quando percebemos que, na verdade, se tratava de um grupo de pessoas com problemas de saúde, nos preocupamos mais. Então, surgiu o comentário de que essas pessoas tinham visto ou tido contato com uma peça luminosa. Aí acendeu o alarme e começamos a ir atrás. Falei com o governador na época, que, além de ser médico, era professor de física. Ele colocou a Polícia Militar à disposição e fomos nos pontos onde poderia existir contaminação”, lembra.
Sem entender claramente do que se tratava, a população resistiu em deixar suas casas para procurar hospital ou evitar contaminação ainda maior nas regiões, como conta Faleiros Filho,. “Em um primeiro momento é muito difícil suspeitar de contaminação apenas com os dados. Fui em todos os pontos para retirar as pessoas. Mas elas não acreditavam, não queriam sair das casas. Cheguei a me contaminar, receber radiação. Mas a contaminação mesmo foi só uma vez no Hospital Marcílio Dias, onde meu sapato chegou a ter contato com o césio”, explica.
O maior impacto ocorreu na saúde de quem teve contato direto com o césio. “Um dos moradores carregou a pedra no bolso da calça. Ele contaminou a calça e queimou a perna dele. Essas pessoas que tiveram contato direto foram capazes de contaminar outras. No meu caso, não cheguei a passar mal. Tive preocupação, à época, com meus filhos, por conta do sapato, mas nada ocorreu. Fiz uma varredura em casa e não tinha contaminação”, declarou o médico.
Para ele, é fundamental acompanhar os efeitos nas pessoas afetadas e em seus descendentes, a fim de produzir registros históricos, científicos e médicos para evitar novos casos e lidar com problemas parecidos, caso seja necessário. "Isso é tão importante. Na época que eu era secretário, criei uma fundação, pois isso não pode passar em branco. É preciso que as pessoas tenham memória para que isso não se repita. É necessário estudar os desdobramentos daquelas pessoas e seus descendentes. Não existe impacto na população em geral. Mas neste grupo restrito, acho que o acompanhamento tem de ser pra sempre”, resume o ex-secretário.