AMOR E ÓDIO
UMA HISTÓRIA DAS TORCIDAS ORGANIZADAS
REPORTAGEM  Peu Araújo e Kaique Dalapola*
EDIÇÃO  Diego Junqueira
ARTE  Danilo Lataro
30/03/2017
Foto: Gabriel Uchida
O DIÁLOGO
Nos três primeiros capítulos de “Amor e ódio”, o R7 mostrou como foi a criação das principais torcidas de Corinthians, Palmeiras, São Paulo e Santos, tratou das amizades e do envolvimento com o Carnaval, deu voz a líderes das organizadas, relembrou o histórico de brigas e assassinatos, discutiu o envolvimento com o crime organizado e apresentou “Jhony”, ex-torcedor que, em 2005, aos 17 anos, tomou um tiro na barriga em um confronto no metrô Tatuapé num conflito com corintianos.

Neste capítulo, é hora de tratar do diálogo: o que pode ser feito para acabar com a violência e ao mesmo tempo manter a festa nas arquibancadas, garantido espaço para todas as torcidas? O internauta verá abaixo uma entrevista com o promotor de Justiça Paulo Castilho e com o fotojornalista Gabriel Uchida. A dúvida que se mantém é não saber por que tanto os clubes de futebol quanto a SSP (Secretaria de Segurança Pública) preferem o silêncio ao diálogo quando o assunto é torcida organizada.
GRITARIA E SILÊNCIO NÃO É CONVERSA
Como os conflitos e a omissão prejudicam o espetáculo das arquibancadas

“Torcedor organizado não é santo” é uma das principais frases que a reportagem do R7 ouviu durante a apuração deste especial. As torcidas reconhecem seus erros e muitos líderes julgam acertadas algumas decisões tomadas pelo poder público. Há consciência de que pedaço de pau não atinge ninguém sozinho e de que armas não acertam o alvo sem alguém puxar o gatilho.

O que as torcidas pedem, no entanto, é que sejam punidos os criminosos, e não a instituição. “As pessoas têm que começar a entender que temos livre arbítrio de gostar de algo, e ser um torcedor organizado não é crime”, comenta André Azevedo, presidente da Anatorg (Associação Nacional das Torcidas Organizadas) e presidente de honra da Dragões da Real (São Paulo).

A generalização, para os torcedores, é um dos maiores vilões para a falta de diálogo com outros setores. Enquanto “todo” torcedor organizado for chamado de bandido, não há conversa. E o diálogo talvez seja hoje a opção mais racional para que as torcidas voltem às arquibancadas e façam a festa no estádio.

Além das torcidas, que não se toleram, há outros atores neste cenário que contribuem para a criminalização das organizada: o clube de futebol é um deles.

Em São Paulo, o diálogo entre organizada e time vive em uma eterna montanha-russa. Há momentos em que os clubes arcam com algumas despesas e incentivam a festa nas arquibancadas. Há momentos em que o clube usa a torcida como cão de guarda para pressionar jogadores, treinador e comissão técnica. Há reuniões a portas fechadas. E há situações, como a atual, em que os times evitam qualquer relação.

As organizadas — principalmente em clássicos — eram convocadas a comparecer ao Segundo Batalhão do Choque para uma conversa. A liderança era obrigada a revelar o horário de saída da sede, itinerário, número de torcedores e outros detalhes para evitar o confronto. O papo reunia a escolta policial, o Metrô, CET (Companhia de Engenharia de Trafego), CPTM (Companhia Paulista de Trens Metropolitanos), Prefeitura de São Paulo e outras instituições.

Reunião no 2º Batalhão do Choque antes do clássico Corinthians x Palmeiras, em 2010
Foto: Luiz Carlos Murauskas - Folhapress

Mas por que, mesmo com toda essa ação preventiva, há enfrentamento de torcidas?

“Você vai no Batalhão de Choque dez horas da manhã, eu cansei de ir, depois mandei um cara para ir lá, como figurante”, revela Marcelo Lima, presidente da TUP (Torcida Uniformizada do Palmeiras). Esta posição coadjuvante das organizadas diz muito sobre a falta de diálogo ou sobre a encenação de uma conversa.

Desde antes do terrível confronto de 1995 no Pacaembu entre palmeirenses e são-paulinos, já era comum ver reportagens mencionando os torcedores como marginais e outros adjetivos semelhantes. “Historicamente, torcidas e imprensa jogam de lados opostos”, explica o fotojornalista Gabriel Uchida, que trabalha há anos com organizadas dentro e fora do País.

No dia 6 de agosto de 2015, uma CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) foi instaurada para investigar e, de certa forma, ouvir as torcidas. Representantes das principais organizadas de São Paulo foram convocados em várias sessões, por nove meses, além de vereadores, torcedores e outros atores. O relatório final afirma que é preciso estabelecer “parcerias entre a administração pública e as torcidas organizadas, para a execução de projetos sociais e educacionais, com vistas ao exercício pleno da cidadania”, além de 18 providências que precisam ser tomadas para um diálogo saudável entre a arquibancada e a sociedade.

Entre essas medidas estão a “liberação do uso de bandeiras, instrumentos musicais e faixas por parte da torcida organizada, sem número limitado” e a “proibição que condenados pela Justiça, por crimes relacionados ou não ao futebol, sejam sócios das torcidas organizadas antes e durante o cumprimento da pena”.

O relatório final soa como uma luz no fim do túnel para as organizadas, mas assim que as reuniões acabaram, a descrença voltou. Ninguém, nem mesmo a liderança das organizadas, parece acreditar que as questões apontadas na CPI serão colocadas em prática.



Volta das festas

As bandeiras em mastros, fumaças, faixas, batuques entre outras coisas, que faziam parte da festa dos estádios até a metade da década de 1990, voltaram neste mês ao centro da discussão entre torcedores e autoridades paulistas.

Em publicações nas redes sociais e sites de algumas organizadas, torcedores mostraram animação para a possível volta da festa completa durante as partidas de futebol.

Desde 1995, depois da “Guerra do Pacaembu”, está proibido a entrada de bandeiras com mastros e fumaças nos estádios de São Paulo. No início do ano passado, a punição foi além, e as torcidas também foram proibidas de entrar nos estádios com faixas, bandeiras, bateria e qualquer tipo de material que levasse o nome da organizada.

Festa na torcida palmeirense no Estádio Moisés Lucarelli, em Campinas. A partida foi realizada pelo Campeonato Paulista de 2008
Foto: Antônio Gaudério - Folhapress

A expectativa para a volta das organizadas, no entanto, durou menos de uma semana. Representantes de torcidas se reuniram com o promotor Paulo Castilho e outras autoridades envolvidas no debate, na quarta-feira (29/3), e a decisão foi tomada: as torcidas organizadas continuam proibidas.

Em publicação no Facebook, o presidente da Independente, Henrique Gomes, o Baby, disse que os torcedores vão continuar tentando a legalização e volta das torcidas. “Não vamos abaixar a cabeça. Resistiremos, lutaremos pela festa e a paz nos estádios. Só assim teremos nosso lugar de direitos de volta”, afirmou.

Outra liderança de organizada que se posicionou nas redes sociais acerca da reunião que manteve as torcidas punidas foi Jerry Xavellier, da Gaviões da Fiel. O corintiano afirmou que a “desobediência [das torcidas] quanto às punições tem surtido efeito”.

Segundo Jerry, o fato de terem marcado uma reunião para discutir a volta das organizadas é uma prova que as manifestações e pedidos dos torcedores tem sido importante.

“Creio que o MP [Ministério Público] deve ter se desdobrado na articulação para manter as coisas como estão, por isso é importante que nossa luta continue até que o nosso objetivo seja alcançado”, disse o diretor da Gaviões.



Por que as diretorias dos times são omissas em relação às suas torcidas?

Não é necessário pensar muitas teorias para se chegar a uma relação sólida entre clubes de futebol e organizadas: não há torcida organizada sem um time. É preciso ter o que defender e o que exaltar nas arquibancadas. É preciso ter uma equipe em campo para incentivar.

A relação entre os times e suas torcidas, porém, é bem mais próxima do que os cânticos e bandeiras, ela esbarra em cobranças nos CTs (Centro de treinamentos), reuniões, patrocínios e vantagens com os ingressos.

Torcida Jovem dentro do CT do Santos
Foto: Jorge Araújo - Folhapress

Atualmente, os quatro principais clubes do estado de São Paulo (Corinthians, Palmeiras, Santos e São Paulo) mantêm uma distância segura das organizadas e evita, inclusive, falar sobre o tema.

O R7 procurou as assessorias dos quatro grandes times de São Paulo e pediu entrevistas com diretores e porta-vozes sobre a relação que os clubes mantêm com suas torcidas organizadas. Todos se omitiram.

Em conversa com a assessoria do Corinthians, tivemos a resposta de que o clube não tem qualquer relação e que dificilmente se pronunciará sobre o assunto. As assessorias de Palmeiras, São Paulo e Santos foram mais políticas, mas também não deram resposta alguma.

A negação às torcidas é uma peneira pequena tapando um sol escaldante. Mesmo que os clubes neguem suas relações, eles são a razão de existência das torcidas. Além disso, os desvios de conduta de suas organizadas refletem diretamente nos times. Se um copo, um chinelo, um isqueiro, uma pedra ou um cuspe for arremessado no gramado, e o juiz relatar na súmula, o time será punido com multa, perda no mando da partida e até jogo com portões fechados (um dos cenários mais melancólicas do futebol).

Um exemplo deste inevitável contato pôde ser visto no clássico entre Santos X Palmeiras no domingo (19), na Vila Belmiro, em Santos. Depois da derrota do time da casa, torcedores — não necessariamente organizados — atiraram um copo e um isqueiro no gramado. Na segunda-feira (20) a diretoria santista acordou com a possibilidade de perda do mando de jogo.

Fatos como esse são rotina entre os clubes brasileiros, e o silêncio das diretorias dos clubes de São Paulo diz muito mais do que as palavras.



A conversa com a PM

A reportagem do R7 pediu à SSP-SP (Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo) uma entrevista com algum representante do 2º Batalhão do Choque, especializado no policiamento em dias de jogos e em eventos de grande proporção.

A proposta da entrevista seria mostrar o ponto de vista da Polícia Militar sobre a postura das torcidas, como é a relação do comando policial com as lideranças das organizadas e quais eram as vantagens e desvantagens do policiamento em dias de jogos.

Membro da Torcida Jovem encara policial militar na arquibancada do Estádio do Pacaembu, em 2009
Foto: Zanone Fraissat - Folhapress

Em vez de um porta-voz, a SSP enviou apenas uma nota sem responder nenhuma das dúvidas. Segue:

“A Polícia Militar informa que o Segundo Batalhão de Polícia de Choque, especializado no policiamento em eventos de grande público, bem como espetáculos esportivos, realiza a escolta de torcidas organizadas com objetivo de garantir a segurança e a preservação da integridade física dessas torcidas, do ponto de concentração até o local da realização do evento. Tem direito a esse tipo de escolta as torcidas que a solicitarem, inclusive a visitante”.

“EU ROMPI O DIÁLOGO COM AS TORCIDAS A PARTIR DO MOMENTO EM QUE ELES QUISEREM AFRONTAR O ESTADO”
Entrevista com o promotor de Justiça do Estado de São Paulo Paulo Castilho

O promotor de Justiça Paulo Castilho em coletiva de imprensa sobre torcidas organizadas, no Fórum Criminal da Barra Funda
Foto: Rovena Rosa - Agência Brasil

Ele é uma das pessoas com o discurso mais severos em relação a torcidas organizadas. Paulo Castilho não mede as palavras para falar sobre os crimes e desvios de condutas apresentados pelos torcedores, mas é direto ao dizer que não é um inimigo das arquibancadas. “Eu não sou inimigo e não sou contra a torcida organizada, eu sou contra a maneira, o modelo que eles adotaram”, comenta.

Designado pelo Procurador Geral de Justiça para combater a violência no futebol desde 2007, Castilho é membro da Comissão de Estudos Jurídicos do Ministério do Esporte, participou da elaboração do novo Código Brasileiro de Justiça Desportiva, integra a comissão de combate à violência no futebol, do CNPG (Conselho Nacional de Procuradores Gerais), é o idealizador da delegacia especializada no combate à violência no futebol, entre outras questões relacionadas aos estádios.

Em entrevista ao R7, o promotor aprofundou o seu ponto de vista sobre as torcidas organizadas, falou sobre as medidas restritivas, torcida única, o trabalho de investigação e muito mais:

R7: Na sua opinião, qual a importância das torcidas organizadas para o espetáculo do futebol?
Paulo Castilho: Hoje?

Sim.
Nos moldes que ela se comporta, para mim, ela não acrescenta nada no espetáculo. Por quê? Porque hoje ela tem símbolo de incentivo à violência, cântico de instigação à violência, cultiva o ódio, cultiva a intolerância e cultiva a violência desde que ela sai da sede. Ela sai ofendendo as pessoas, depredando os lugares por onde passa, saqueando os estabelecimentos onde param, necessitam uma escolta e vão para o confronto. No estádio eles dominam o espaço. Quem é torcedor comum eles agridem, passam por cima e não respeitam ninguém. Então, nesses moldes, eu acho que torcida organizada não acrescenta nada. A torcida organizada, no modelo que existe hoje, ela sucumbiu, ela não tem mais espaço para se projetar pela maneira como ela se comporta. Ela tem que se reinventar de uma maneira civilizada, de uma maneira pacífica, de uma maneira educada.

Você costuma frequentar estádios para torcer?
Desde criança frequentei estádio, hoje minha condição não permite mais.

Que lembranças você tem das arquibancadas?
Dentro do estádio de futebol sempre teve aquela brincadeira, um zoando com o outro pelo resultado, sempre teve esse problema de torcidas rivais, mas havia um limite de respeito, educação. Até tinha uma confusãozinha entre dois torcedores, mas já era resolvido o assunto.

Qual o seu time do coração, você revela isso?
XV de Piracicaba (em tom irônico e aos risos).

Como é seu diálogo com as torcidas organizadas hoje?
Eu rompi o diálogo com as torcidas a partir do momento em que eles quiseram afrontar o Estado. Antes de romper, eu me reuni com os presidentes e disse a eles que estavam no rumo errado e que, se eles continuassem marchando neste sentido, a tendência era que eles seriam expurgados pelo Estado e por toda a sociedade. Eu os alertei, portanto me considero um cara sério, honesto e leal. Eu não fiz nada que eles não soubessem e não agi de maneira desleal.

Mas antes desse rompimento, como era a sua conversa com as torcidas?
Era muito diferente. Eu já dialoguei, convivi e conversei dez anos com torcida organizada, sempre acreditando que eles pudessem se conscientizar. E sempre escutei o discurso. Quer que eu fale o que eles vão falar para você? Eles vão dizer que são bonzinhos, que doam sangue, que fazem ação de caridade, que não é função deles retirar da torcida os torcedores violentos, que eles não sabem quem se envolve nisso, que é função do Estado, toda essa conversa eu já escutei bastante, conheço de cor e salteado.

Você se considera um inimigo das torcidas organizadas?
Muito pelo contrário. Eu não sou inimigo e não sou contra a torcida organizada, eu sou contra a maneira, o modelo que eles adotaram. A torcida organizada hoje se tornou um negócio financeiro, onde eles não estão respeitando ninguém, absolutamente ninguém. Querem intimidar jogador, intimidar dirigente de clube, intimidar a imprensa, afrontam a polícia. Esse modelo eu não posso, como promotor de justiça, fiscal da lei e defensor da sociedade, aprovar. Por isso que nós implementamos essa série de medidas no transcorrer deste ano. Agora cabe a eles porem a mão na consciência e entenderem que a sociedade não os quer desse jeito. Não é porque eles têm o nome de torcida organizada que são torcida organizada, eles não se comportam como tal. Eu posso falar que sou padre e não rezar a missa.

Por que ainda se trata as organizadas de forma generalista? Não é possível punir as pessoas que cometem os crimes?
Eu não te falei antes de você fazer as perguntas que eles iam falar isso? Iam falar que não se deve punir a instituição e que cabe ao Estado identificar quem cometeu o crime. Nesse modelo de torcida, as pessoas violentas tomam o comando da torcida. Você sabia que eles batem em mulher igual batem em homem dentro da torcida? Você não sabia disso, sabia? Eles não falaram isso para você. Eles se impõem pela violência, e aí todos os que querem ser adeptos, que admiram, que querem estar na torcida, seguem a liderança, e a liderança sendo feita pelos mais fortes, que é a lei do mais forte que existe dentro da torcida organizada hoje, eles são obrigados a se comportar assim. Tanto que, se numa emboscada ou num encontro tiver três ônibus e alguém não descer para brigar, essa pessoa sofre represália, apanha dentro da torcida. Não é questão de você tirar meia dúzia, é uma questão do comportamento da torcida.

Como que essa punição à instituição inibe a violência?
Aí tem um conjunto de medidas, o assunto é muito complexo. Primeiro que não tem punição só às organizadas. Em um ano, foram cumpridos mais de 87 mandados de prisão e mais de 120 mandados de busca e apreensão, de escuta telefônica, de medidas cautelares, mais de 400 torcedores foram afastados dos estádios de futebol e/ou presos. A liderança do São Paulo (Torcida Independente e Dragões da Real) foi indiciada, denunciada e afastada, a liderança da Gaviões também. Outros líderes da Torcida Jovem e da Mancha [Verde] também. Não é só a torcida que está sendo punida. Essa informação tem que ser bem detalhada. Há uma série de medidas, que junto com autuações fiscais e multas, asfixiou a torcida organizada, tanto que eles perderam dinheiro. Uma das medidas que os prejudicou financeiramente foi a torcida única, porque em dia de clássico, ele deixa de organizar caravana, deixa de vender material, deixa de vender camisa ou boné e com isso arrecada muito menos. É lógico que você tem o imponderável. Em uma cidade com 15 milhões de pessoas, se meia dúzia ou cem quiserem criar uma confusão, há inúmeros pontos na cidade em que pode ter esse confronto, mas o histórico tem mostrado uma violência decrescente, tanto que sábado (10) tivemos um Palmeiras X São Paulo, 37 mil pessoas, e não houve novidades, foi tranquilo, zero ocorrências, no entorno também estava muito tranquilo.

Como é feito o trabalho para chegar aos envolvidos em brigas e não acontecerem erros como o de emitir um mandado para um torcedor que morava na Austrália, por exemplo?
É feito todo um trabalho de inteligência, de denúncia, de investigação, oitiva de vítimas, testemunhas presenciais, perícias, e a Polícia Civil fica à frente dessas investigações.

Como é feito o monitoramento dos torcedores que não podem assistir aos jogos de futebol?
Eles têm que comparecer ao Corpo de Bombeiros ou a um lugar especificado pelo juiz duas horas antes do jogo e sair duas horas depois. Se ele não comparecer, o juiz é imediatamente comunicado e ele pode revogar o benefício, decretar a prisão ou o processo prosseguir.

A tornozeleira eletrônica poderia ajudar neste sentido?
Poderia ajudar, porque você controlaria onde ele está. Seria um bom instrumento.

Qual foi a última briga entre torcidas dentro de um estádio paulista?
Aí você precisa levantar, porque de cabeça eu sinceramente não sei. O problema da violência nunca foi muito dentro do estádio de futebol, você tem que ver as violências relacionadas ao evento esportivo.

Como prevenir os confrontos fora dos estádios?
A gente monitora as redes sociais, tem informações e faz um acompanhamento, além do aumento na punição dos envolvidos, que foi o que foi feito no último ano. E eu digo pra você que reduziu os confrontos em 75%, que eu acho que é um número bem expressivo.

Tem um marco nas brigas entre torcidas que é a de 1995 entre Palmeiras e São Paulo, no Pacaembu. Você acredita que as torcidas ainda sofrem as consequências daquele conflito?
Não, não. A verdade é a seguinte. Eles precisam se conscientizar de que eles têm que ir ao estádio de futebol de maneira civilizada, que eles têm que respeitar os demais torcedores, que eles têm que se portar de uma maneira educada. Você vê hoje no Allianz Parque, na hora do jogo, integrantes da Mancha e das torcidas organizadas não fazem silêncio quando canta o Hino Nacional, isso é uma prova de desrespeito, de falta de educação. Eles têm que se portar como gente educada e civilizada na sociedade. Eu não sou contra eles, até acho que eles têm que buscar uma medida, uma proposta onde eles provem que são pessoas que sabem se comportar civilizadamente. Falar, qualquer um fala, eles têm que mostrar com atitude.

O que mudou nas torcidas desde a briga de 1995 para cá?
Eu acho que a torcida ganhou um status, um poder pela violência, acho que se tornou um negócio altamente lucrativo, ela começou a movimentar muito dinheiro, os clubes fomentaram as torcidas. Não é porque o presidente quer dar ingresso pra torcida, não. É porque ele é ameaçado e tem medo da torcida. Eles ganharam, com essa modernização, um papel importante no meio em que eles convivem pelo poder, pelo dinheiro, pelo status. Com essas medidas restritivas às organizadas, aumentou o público, a renda, criança e mulher no estádio. Você sabia que aumentou 11% de mulher e criança dentro do estádio? Que aumentou 20% a média de público com torcida única? Que economiza 150 policiais por jogo? Que as ocorrências diminuíram em 75%? É tudo isso que se tem que levar em conta. A gente acha bonito duas torcidas? Acha, mas é melhor você ter uma torcida que não vai lá para brigar do que ter duas que brigam. Como elas cultivam a intolerância, o ódio e a violência, se você colocar as duas turmas no mesmo ambiente vira um lugar hostil e propício para o confronto. Na hora que você tira uma, a torcida da casa não tem com quem brigar. Aí ela se comporta civilizadamente. Agora, se eles foram para o estádio para torcer, ter cânticos, abrir a bandeira, fazer festa, perfeito. Mas eles têm que ter responsabilidade.

Aqui em São Paulo os mastros de bandeiras estão proibidos há 22 anos...
Você sabe que eu fui na Assembleia e consegui revogar a lei? Eles não contaram isso para você. Isso aconteceu numa quarta à noite, e no sábado eles brigaram e mataram um menino, acho que foi do Corinthians ou do Palmeiras, no rio.

Em que ano foi isso?
2011. Eu fui lá e ajudei a aprovar essa lei para liberar isso aí. O governador (depois do assassinato) obviamente vetou, mas aprovei quase que por unanimidade na assembleia. Eles estavam lá, pergunta para eles se é mentira. Eu fiz isso acreditando no ser humano, acreditando que eles são capazes. E tem um fenômeno aí que ninguém menciona. Eles, individualmente, a grande maioria são bons, são tranquilos, mas quando se juntam em bando se tornam altamente violentos.

Mas mesmo em bando não é um equívoco o crime de uma pessoa ser pertencer a algo?
Não podemos dizer, por exemplo, que todo torcedor é bandido nem que todo político é ladrão.
Mas de maneira alguma eu falei isso.

Mas a opinião pública acaba tendo essa visão sobre as torcidas.
Por quê? Porque quando eles estão em algum lugar, eles se comportam como tal, toda caravana deles, eles param no posto de gasolina e saqueiam a loja. Não dá para você falar que não foram aqueles 200. Foram 80, mas os que não saquearam endossaram e não reprimiram, não se afastaram da torcida.

E o que mantém as torcidas organizadas fora dos estádios?
Aí é uma questão de segurança. Medidas restritivas você tem todos os dias. Por exemplo, se um presidente da república for a um determinado local, fecham a rua, impedem a passagem, tem detector de metal. São questões de segurança pública, e algumas decisões judiciais, como a do juiz do Rio de Janeiro Marcelo Rubiolli, que decidiu que as torcidas organizadas do Corinthians estão proibidas de se manifestar em qualquer lugar do Brasil. Eles não podem ir em nenhum local que tenha evento esportivo com faixa, bandeira, com nada, sob pena de multa diária, acho que de R$ 20 mil. Eles estão colhendo o que plantaram.

Há alguma perspectiva para o fim da torcida única?
Naquele modelo antigo não. Eles têm que pensar, se estruturarem, ter algum projeto, proposta, algo que comprove que eles estão do lado do bem.

Uma das questões que sempre ouvimos é da relação das torcidas com o crime organizado. Há alguma prova concreta a respeito disso?
O que temos são pessoas ligadas ao crime organizado que integram torcidas organizadas. Dentro de milhares de pessoas, tem pessoas que são ligadas ao crime organizado. Eu não tenho nenhuma prova e não acredito que a torcida organizada seja o foco do crime organizado. Pelo contrário, eu acho que eles não têm interesse, porque a torcida atrai a mídia negativa, atrai muito a imprensa, a população, tem muita gente contra eles.
Leia entrevista completaFechar
RESPEITO SEM CLUBISMO
Quem é o jornalista respeitado pelas torcidas organizadas?
O fotógrafo Gabriel Uchida, de 32 anos, é um dos poucos representantes da imprensa a circular entre as organizadas brasileiras. Seu trabalho tem reconhecimento mundial e sua câmera já registrou momentos históricos de muitas torcidas daqui e de fora. Seu trânsito livre nas arquibancadas é um sinal de seu respeito com os torcedores. “Eu subverti a ordem do jogo, virei as costas para as estrelas do campo e foquei no povo”, comenta o fundador da agência FotoTorcida.

Paulista de Valinhos, o fotógrafo explica o seu caminho dentro das uniformizadas. “O meu trabalho busca compreender e humanizar as torcidas, não santificar ninguém”. E pontua sua maior dificuldade no ofício. “Sem dúvida alguma, a polícia”.

Em entrevista exclusiva ao R7, Uchida fala ainda sobre a importância de seus registros, dos problemas que as organizadas enfrentam, da relação com a imprensa e aponta caminhos para que a arquibancada seja um lugar só de festa:

R7: Quando você decidiu apontar a sua câmera para as torcidas?
Gabriel Uchida: Foi em 2009. Sempre fui fã de futebol, mas tudo começou quando me dei conta de que o ritual de estar em um estádio era muito maior e até mais interessante do que o ato de apenas assistir ao jogo. Os costumes, os símbolos, a massa e o transe coletivo. A disputa, a violência e a adrenalina. A arquibancada é uma atmosfera incrível e viciante. Do ponto de vista jornalístico, tinha também o interesse de estudar e compreender aqueles grupos. Dentro do futebol, as torcidas são a periferia do jogo. Retratar as torcidas é sobretudo uma questão política, ideológica. Eu subverti a ordem do jogo, virei as costas para as estrelas do campo e foquei no povo. Além disso, pessoalmente, nunca me interessei pela mídia esportiva que flertava com a cobertura de celebridades. Por mais que eu entenda todo esse fetiche pelo glamour e a necessidade de construir símbolos de sucesso, para mim, a história e os costumes do povão são mais valiosos que a roupa, o carro e as redes sociais dos jogadores.

Como você foi recebido nas arquibancadas?
Com a devida e correta desconfiança. Historicamente, torcidas e imprensa jogam de lados opostos. Esse foi o primeiro grande desafio, construir uma relação sólida, séria e sincera. Por muitas vezes, meu papel no estádio era muito mais de dialogar com as pessoas do que fotografar. Mas como havia também uma certa carência por esse tipo de conteúdo, assim que os esclarecimentos foram feitos, passei a ser recebido da melhor maneira possível. Na verdade, passei a contar com a ajuda e até mesmo proteção das próprias torcidas. Por exemplo, nas raras vezes que alguém me abordou agressivamente na arquibancada, sempre havia dezenas de pessoas ao redor que me conheciam e respeitavam meu trabalho — e acabavam interferindo a meu favor. Um exemplo que me surpreendeu foi quando o Corinthians jogou a final da Libertadores com o Boca Juniors. Até então, aquela seria a partida mais importante da história do clube, mas por motivos obscuros, meu credenciamento foi negado neste dia. Os ingressos estavam esgotados e os que eram revendidos ultrapassavam os milhares de reais. Mesmo assim, as organizadas passaram a me contatar para me presentear com uma entrada. Por mais que eu quisesse fotografar aquela partida, pensei que estaria tirando o lugar de algum torcedor e que aquele poderia ser um dos dias mais felizes de sua vida, por isso, rejeitei a gentileza.

Qual é a maior dificuldade neste trabalho?
Sem dúvida alguma, a polícia. Hoje em uma manifestação, quando há violência policial, tentativas de forjar provas ou qualquer outra irregularidade, geralmente há uma horda de fotógrafos e jornalistas próximos, ou pelo menos gente que vai registrar o momento. Com as torcidas isso sempre aconteceu, mas nunca havia ninguém para expor essa situação. Várias vezes já recebi intimidação ou fui reprimido por estar junto das organizadas. Uma vez no estádio do Morumbi flagrei um policial dizendo para um torcedor já imobilizado: “Vou dar um tiro na sua cara. Vai ser só mais um que a gente arrebenta aqui” (Assista ao vídeo). O discurso só parou porque me avistaram escondido com a câmera e, obviamente, fui duramente repreendido por estar lá. Todas as irregularidades que acontecem por parte dos oficiais nas manifestações hoje em dia já vêm acontecendo muito pior há décadas com as torcidas. Porém, no futebol, a história e as notícias geralmente são contadas de acordo com a versão da polícia e nem mesmo há muito interesse em ouvir outros lados.

Qual foi o ponto em que a imprensa passou a criminalizar as organizadas?
O meu trabalho busca compreender e humanizar as torcidas, não santificar ninguém. É bom lembrar que torcida organizada não é grupo de escoteiros, mas que a violência também está em toda a sociedade, não só no estádio. Existem sim muitos erros nas torcidas, mas também existe muito sensacionalismo por parte da imprensa porque o espetáculo da violência dá audiência, rende cliques. Aliado a isso, vejo dois pontos fundamentais: primeiro, que existe um movimento de elitização do futebol no qual o torcedor de baixa renda, que é a maioria nas organizadas, não é tão desejado. Além disso, é preciso culpar alguém pela falência dos próprios clubes em atrair mais público, e as organizadas recebem esse papel.

Por que há tão poucas notícias sobre as boas ações vindas das torcidas?
Porque estamos falando de décadas de construção no imaginário popular de que as organizadas representam a violência e o lado ruim do futebol. Criou-se um jogo do bem contra o mal. De um lado está a polícia, os governos, as autoridades e a ordem. Do outro estão os que se supõem marginais e violentos. Quem vai dar voz a esse grupo?

Qual é a importância do seu trabalho para as organizadas?
Eu acho que toda documentação histórica por si só já é importante. Além disso, estamos falando de grupos que existem há décadas e que tem de milhares de pessoas que estão espalhados por todo o país e com conexões no exterior.

Você tem ideia de quantas organizadas já visitou?
Como são vários anos, diversas divisões e campeonatos diferentes, fica muito difícil ter uma ideia.

E quais você não conseguiu fotografar?
Nunca tive problema de não poder fotografar, pelo contrário, sempre tive grande liberdade em qualquer ônibus, metrô, sede ou arquibancada. As que eventualmente ainda não foram registradas foi unicamente por uma questão de distância geográfica.

Qual é a maior dificuldade das organizadas de São Paulo hoje?
As organizadas pecam por não se entenderam como classe e por isso deixam de somar forças contra alvos em comum. As torcidas ainda não entenderam que suas diferenças são apenas nas cores de camisa, mas que estão do mesmo lado do jogo — e que estão perdendo de goleada.

O que é preciso para que a festa da arquibancada volte aos estádios?
Luta e organização por parte das torcidas, clareza de ideias e menos preconceito por parte das autoridades. Eu defendo a teoria de que quanto mais festa for liberada para a torcida, menos violência vai acontecer. É uma questão de lógica, quanto mais pessoas estiverem empenhadas e ocupadas em cuidar de bandeirões, bexigas, faixas e instrumentos musicais, menos torcedores vão ter tempo para brigar, por exemplo. As organizadas surgiram primeiramente para apoiar e fazer festa pelos times, só que cada vez mais são proibidas disso. Por diversas vezes já acompanhei torcidas levando bandeirão para jogo. Sabe o que acontece? Dezenas de jovens ficam desde cedo até a hora do jogo com a maior responsabilidade por aquele símbolo, simplesmente não há tempo ou preocupação para outro assunto. Consequentemente, penso que se mais festa fosse liberada, mais pessoas estariam envolvidas em criar uma atmosfera melhor no estádio.

O que as torcidas precisam fazer para que a imprensa mude de opinião a respeito delas?
O mesmo que um movimento social de esquerda pode fazer para ter uma melhor abordagem por um veículo de direita: nada. A lógica deve ser outra, é a imprensa que deve se livrar de velhos preconceitos e buscar mais clareza ao invés de antigos julgamentos. Não se trata de defender a torcida, mas sim de ter coerência e entender que as organizadas muitas vezes são, na verdade, vítimas.

O que a imprensa precisa fazer para ser melhor recebida pelas torcidas?
Eu acredito que respeito dado também é retribuído. Nenhuma torcida espera elogios de uma briga, por exemplo. O que acontece é que ninguém gosta de ser injustiçado ou acusado de algo que não cometeu e isso ocorre há muito tempo com as organizadas. Tenho várias críticas às torcidas, mas depois de vários anos acompanhando esse mundo de perto, já vi as organizadas serem mais vítimas do que responsáveis pela violência.
Leia entrevista completaFechar

* Estagiário do R7