CAPÍTULO IV
NEGRO DRAMA
Um panorama do racismo no Brasil
O R7 entrevistou 28 pessoas, entre personalidades e especialistas, e se debruçou em 22 fontes de pesquisa para discutir a situação da população negra no País.
Foto: Juca Guimarães
27/07/2017
São Paulo - Brasil
REPORTAGEM
Giorgia Cavicchioli, Juca Guimarães
e Peu Araújo
ARTE
Danilo Lataro

Com base na Convenção para a prevenção e repressão do crime de genocídio, adotada pelas Organizações das Nações Unidas em Assembleia Geral em 1948, o R7 reconheceu situações críticas em relação à população negra no Brasil em nove diferentes cenários: número de mortes, violência, educação, mercado de trabalho, saúde, habitação, família, violência contra a mulher e falta de representatividade.

O capítulo de número quatro — serão cinco no total — apresenta números e opiniões sobre a família e a mulher negra no Brasil.

A pedido do R7, o Instituto Paraná Pesquisas realizou um levantamento exclusivo sobre racismo no Brasil. O relatório, realizado no final do mês de maio de 2017, fez duas perguntas para a população. Uma delas era se algum dia aquela pessoa foi racista. 93,7% afirmou que não, 5,9% disse que sim e 0,5% não respondeu.

A segunda pergunta feita foi se a pessoa tinha presenciado algum ato ou cena racista. Para essa questão, 50,3% afirmou que sim. 49,2% dos entrevistados disse que não e 0,5% não respondeu. A pesquisa ouviu 2.022 eleitores com 16 anos ou mais. O levantamento foi feito em todo o Brasil e tem 95% de confiança. A margem de erro estimada é de 2%.

O R7 recorreu ao título da música do Racionais MC’s para dar nome a essa reportagem especial. Assista a uma interpretação exclusiva de Tawane Theodoro, poeta e uma das participantes de poetry slam’s (campeonato de poesia).

Uma negra e uma criança nos braços
O assassinato da mulher negra no Brasil

O número de homicídios de negras aumentou em 54,2% de 2003 para 2013. Em dez anos, passou de 1.864 para 2.875 vítimas, segundo o Mapa da Violência 2015, elaborado pela Flacso (Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais) Brasil. No mesmo período, o número de homicídios de mulheres brancas caiu de 1.747 vítimas para 1.576, o que representa uma redução de 9,8%.

Amapá, Paraíba, Pernambuco e Distrito Federal têm índices de mortes de mulheres negras que passam de 300% em relação a mulheres brancas. A maior taxa está entre as mulheres de 18 a 30 anos de idade, com pico também na faixa com menos de um ano de idade.

O estudo mostra que, diferentemente dos homens, que morrem na maior parte das vezes em decorrência de arma de fogo, as mulheres são mais vítimas de assassinatos causados por força física e objeto cortante/penetrante/contundente. Além disso, a agressão que vitima mulheres acontece dentro de casa e por pessoas da própria família. Mais uma diferença em relação aos homens: eles são assassinados por desconhecidos na maioria das vezes.

Dados da pesquisa Visível e Invisível: a Vitimização de Mulheres no Brasil, de março de 2017, realizada pelo FBSP (Fórum Brasileiro de Segurança Pública) e pelo Instituto Datafolha com o apoio do Instituto Avon e do Governo do Canadá, mostra que ao menos 16,1 milhões de brasileiras tenham sofrido algum tipo de violência no período de um ano. A maior incidência de agressão foi entre as negras (31%).

O levantamento destaca que cerca de 43% das mulheres negras relataram ter vivenciado alguma situação de assédio na rua, no transporte público, ambiente de trabalho e em festas. Entre mulheres brancas, o número é de 35%.

Maria das Neves, que é coordenadora nacional de juventude da UBM (União Brasileira de Mulheres) e diretora de jovens feministas da UJS (União da Juventude Socialista), afirma que “a hipersexualização da mulher negra nos meios de comunicação, os baixíssimos salários e o aumento do feminicídio contra as mulheres são fruto da dupla opressão: o machismo e o racismo.”

— Hoje, há leis que visam combater o racismo institucional, mas a questão é grave. Apesar de 54% da população brasileira declarar-se preta ou parda, somos um País racista e negamos essa realidade. A plena implementação da lei 10.639, que institui o ensino da cultura africana e afro-brasileira nas escolas, é um passo estratégico no enfrentamento ao racismo.

Sou irmã das minhas trutas de batalha
Uma reflexão sobre o que é ser mulher negra no Brasil

Tawane Theodoro tem 18 anos, é estudante e poeta. Recentemente, um vídeo em que a participante de poetry slam’s (campeonato de poesia) aparece declamando um poema de sua autoria viralizou nas redes sociais.

A convite da reportagem, a jovem fez uma gravação exclusiva reproduzindo esses versos que falam sobre o drama da mulher negra na sociedade brasileira. Veja no vídeo abaixo.

O fruto do negro drama
Um panorama da violência obstétrica no Brasil

Dados divulgados pelo Instituto Patrícia Galvão sobre mulheres negras grávidas são alarmantes. Elas são: 53,6% das vítimas de mortalidade materna (SIM/Ministério da Saúde/2015) e 65,9% das vítimas de violência obstétrica (Cadernos de Saúde Pública 30/2014/Fiocruz).

No ano de 2012, foi publicado pelo Senado Federal um dossiê elaborado pela Rede Parto do Princípio para a CPMI (Comissão Parlamentar Mista de Inquérito) da Violência Contra as Mulheres. Ele faz uma análise da violência obstétrica no Brasil e diz que “o racismo dos profissionais de saúde atrasa a decisão da mulher de buscar assistência, dificulta o acesso da mulher ao serviço de saúde e dificulta o acesso da mulher ao tratamento adequado.”

O dossiê também afirma que “a eclâmpsia [convulsões na gestante], pré-eclâmpsia [hipertensão arterial específica da gravidez] e os distúrbios hipertensivos afetam muito mais a população negra, sendo as maiores causas da mortalidade materna da população negra.”

“Tinha que ser! Olha aí, pobre, preta, tatuada e drogada! Isso não é eclâmpsia, é droga!”
Fala atribuída ao anestesista que foi chamado durante a madrugada (plantão de sobreaviso) para atender a uma cesárea de emergência de uma gestante adolescente com eclâmpsia cujo parceiro estava preso por tráfico de drogas. (Maternidade Pró-Matre, Vitória-ES). Fonte: Dossiê da CPMI da Violência Contra as Mulheres

O relatório também mostrou que a episiotomia [corte feito entre a vagina e o ânus para ampliar o canal de parto] é marcadamente “um problema de classe social e de raça”. O dossiê mostra que, enquanto as mulheres brancas e de classe média — que contam com o setor privado da saúde — em sua maioria serão "cortadas por cima" por meio da cesárea. As mulheres que dependem do SUS — mais de dois terços delas — serão "cortadas por baixo" e passarão pelo parto vaginal com episiotomia.

De acordo com o código de ética médica do Conselho Federal de Medicina, “no processo de tomada de decisões profissionais, de acordo com seus ditames de consciência e as previsões legais, o médico aceitará as escolhas de seus pacientes, relativas aos procedimentos diagnósticos e terapêuticos por eles expressos, desde que adequadas ao caso e cientificamente reconhecidas.”

Além disso, o código de ética também diz que o médico não pode “deixar de obter consentimento do paciente ou de seu representante legal após esclarecê-lo sobre o procedimento a ser realizado, salvo em caso de risco iminente de morte” e também está impedido de “tratar o ser humano sem civilidade ou consideração, desrespeitar sua dignidade ou discriminá-lo de qualquer forma ou sob qualquer pretexto.”

Eis-me aqui
Uma vítima de violência obstétrica narra os momentos de tensão em seu parto

“Meu nome é Gabriela Gaabe, tenho 30 anos, sou microempreendedora e já sofri violência obstétrica.

O caso aconteceu em um hospital municipal do SUS (Sistema Único de Saúde) no dia 11 de março de 2010. No momento em que cheguei na maternidade, não queriam me internar. Alegaram falta de vagas, mas o pai da minha filha ‘fez um show’ e rapidinho surgiram vagas.

Se eu sentia dor? Eu estava em trabalho de parto. Quando fui atendida, o médico falou: ‘deite, tira a calcinha, apoia as pernas ali e já volto’. Ele fez o exame de toque em mim com raiva e me machucou. Eu gritei de dor. Sangrou. E ele nem ligou. Chorei muito. Quando a bebê nasceu, colocaram ela em cima de mim e disseram: ‘É só colocar o peito na boca e amamentar’. Não era isso. Fez uma ferida enorme e, mesmo com dor, eles não ligavam. Passada a anestesia, me mandaram levantar. Eu estava cheia de pontos e, quando demonstrei dor, uma enfermeira pediu para eu ser ‘ágil’. Eu fiquei três dias internada e eu passava a madrugada toda acordada. A bebê chorava muito e ninguém me dava assistência. Na época, me calei. Fiquei com medo de fazerem algo pior.”

Seu jogo é sujo e eu não me encaixo
A enfermeira Juliana Mittelbach foi vítima de racismo ao tentar comprar um lápis para a sobrancelha. Veja como ela descreve a cena

Eu estava indo para uma atividade da Marcha Mundial das Mulheres e a loja fica na rua 15 de novembro, em Curitiba. Eu parei em uma das lojas. Eu estava de tênis, calça leggin, uma blusa da marcha e um casaco no braço, porque aqui faz muito frio. Quando eu entrei na loja, eu percebi que as três vendedoras e o segurança ficaram ao redor. Elas expressaram uma clara preocupação e fizeram um sinal para o segurança. Foi muito constrangedor logo que eu entrei. Ninguém veio falar comigo e a loja estava vazia. Pedi por um lápis de olho preto e um lápis pra sobrancelha, que é o básico da maquiagem. Ela abriu uma gaveta que tinha uma infinidade de lápis de olho e falou que não tinha. Ela saiu e falou que ia ver no estoque, passou por uma porta, e demorou um tempo que não dava para ver se tinha no estoque e me disse que não tinha. Ela pediu para que eu fosse em outra loja.

Foi tão constrangedor porque eu fiquei com medo que eles dissessem que eu estava pegando alguma coisa. Fiquei distante de qualquer coisa, no meio da loja, parada. Foi muito constrangedor. Eu contei o que tinha acontecido para as minhas amigas e uma companheira branca foi na loja. Ela pediu a mesma coisa e apresentaram para ela várias opções. Ela tirou as fotos e mandou pra mim. Ela questionou a vendedora sobre o que tinha acontecido e ela disse que deve ter sido um engano. Quando ela me contou, eu até chorei. Ela falou: “vamos voltar lá”. Mas eu disse: “se eu voltar lá eu vou perder a razão”. Fiquei muito incomodada.

Nesse momento eu sentei e escrevi a postagem. Conversando com outras pessoas, eu fiquei na dúvida se poderia fazer um boletim de ocorrência. Porque ela não me falou diretamente: não vou te atender porque você é negra. Mas eu fiquei sabendo que cabia sim um boletim de ocorrência porque ela não pode me deixar de vender algo porque sou negra. Ontem eu fui na delegacia de combate ao racismo e fiz o boletim de ocorrência.

Eu nasci negra, já passei por isso várias vezes. Já fui perseguida por segurança, mas essa foi muito constrangedora. Porque eu me senti muito acuada. Todos os olhares para cima de mim. Eu estava muito vulnerável. Foi até bom que na delegacia eles solicitaram para a loja as imagens das câmeras da loja. A gente passa por isso cotidianamente. É fazer uma entrevista e ouvir que você não tem o perfil, é na escola ouvir que seu cabelo é ruim. Quando você é adolescente, as pessoas dizem que você vai engravidar na adolescência, que você vai se envolver com as drogas. Sofremos com isso desde que somos criança. Mas dessa vez fiquei muito acuada.

O racismo não foi direto. Não me chamaram de “macaco”, mas a gente identifica de cara o racismo. Eu fiquei com aquele sentimento de “será que eu vou contar vão me dar crédito”? Nas redes, do mesmo jeito que tiveram pessoas solidárias, tiveram muitas pessoas criticando. Falaram que era uma história inventada, que eu queria ganhar produtos...

Ontem mesmo eu também reclamei. Fiz uma reclamação por e-mail e ontem mesmo uma funcionária me ligou pedindo desculpas e pediu a identificação da funcionaria. Ela disse que a marca preza pela diversidade e me ofereceu uma cesta de produtos. Mas eu conversei com ela, dizendo que não é responsabilidade da funcionária, mas que a marca é responsável pela contratação. É preciso que ofereçam um treinamento para tratar as pessoas com respeito. Eu perdi um interesse na marca.

Em nota, a assessoria de imprensa do Boticário se pronunciou sobre o caso:

“A situação narrada não reflete os valores e as crenças do Grupo Boticário, que tem entre seus compromissos públicos o repúdio a qualquer forma de racismo. O Boticário é uma marca 100% brasileira, que ama nossa diversidade e preza pelo respeito em todas as relações. Nossos funcionários e franqueados recebem treinamentos permanentes para atender a todos de forma respeitosa e igualitária, com enfoque na atenção genuína aos interesses do consumidor. Estamos verificando o ocorrido de forma ampla para assim tomar as providências que forem pertinentes.”

Eu era carne, agora sou a própria navalha
Entrevista com Eliane Dias

Foto: Greg Salibian/Folhapress

A advogada Eliane Dias tem 46 anos, é produtora musical, feminista negra e mãe. Hoje em dia, ela cuida da carreira do grupo de rap mais influente do Brasil: o Racionais MC’s. Mas o caminho que trilhou até ser um grande nome de resistência foi cheio de desafios. Ela morou na rua com a mãe, foi faxineira, babá e modelo.

Eliane também faz um profundo e importante trabalho dentro da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo com o S.O.S. Racismo. Em entrevista exclusiva ao R7, a advogada explica que a mulher negra enfrenta dois tipos de preconceitos: o de gênero e o de raça. Porém, ela acredita que o que aparece primeiro é o racismo.

— Porque você vê primeiro quem está na classe social? É o homem branco. É o que ganha mais. Depois vem a mulher branca, depois é o homem negro e depois vem a mulher negra. Então, se a mulher fosse branca, se eu fosse branca, eu estaria lá no segundo lugar. Como eu sou negra eu estou em quarto. Então eu acho que a raça vem primeiro.

O preconceito de gênero, aliado ao racismo, também prejudica as mulheres negras no campo amoroso. Segundo Eliane, “os homens, se eles puderem escolher entre uma mulher branca e uma mulher negra, ele vai escolher uma mulher branca”. Ela diz que isso acontece “porque no subconsciente, até pouco tempo, isso era uma ascensão a mais.”

Produtora do Racionais e casada com Mano Brown, Eliane comenta que desde o lançamento da música Negro Drama, o que mudou em relação ao racismo no Brasil é que hoje a informação está mais acessível para todos e que isso ajuda no combate aos problemas enfrentados pela população negra no Brasil.

— Eu sou também filha de mãe solteira. Minha história não é diferente de mais uma negra com um filho no braço. E existem muitas até hoje. Mas o que muda é o acesso à informação mesmo. Hoje a gente pode escolher qual o dia e a hora que quer ter filho. Então, isso já é uma grande coisa.

Ela diz que meninas negras, principalmente da periferia, precisam de uma orientação para entender o que é importante para a vida delas.

— Só que não tem esse trabalho feito. Ninguém olha para essas meninas da periferia. Tem um trabalho de educação familiar talvez, um posto de saúde para a mulher, mas a menina com 14 anos ela não é uma mulher, mas também não é uma criança. Ela está jogada lá. Não tem nada. Não tem nada para ela. Aí aparece aquele mulherão, com aquele corpão e com a mente vazia: gravidez na certa.

Hoje, Eliane abre espaço para muitas mulheres no rap — um ambiente que ainda é machista e que ela luta para mudar. Porém, ela lembra que “o Brasil, num geral, é machista e está se tornando mais machista em todos os espaços.”

— O rap ele é mais um espaço onde é um pouco mais difícil. Primeiro porque é majoritariamente homens e homens que têm um conhecimento um pouco mais rude. E depois, periferia. A maioria são pessoas da periferia. E aí acaba que fica tudo mais difícil para gente mesmo. A mulherada que está no rap tem que se esforçar muito, se sobressair muito.

Família brasileira
Entrevista com a Lia Vainer, doutora em psicologia social, pesquisadora das relações raciais e autora do livro Entre o Encardido, o Branco e o Branquíssimo. Durante três anos, ela pesquisou o racismo dentro de famílias inter-raciais
R7: Quando e como surgiu a ideia de pesquisar a relações de racismo dentro dos núcleos familiares?
Lia Vainer: A pergunta que iniciou este trabalho começou a ser formulada a partir de diferentes relatos de sujeitos que expunham a mim os conflitos gerados pela questão da raça no interior de suas famílias. Os relatos eram de pessoas com sofrimentos intensos de racismo, com feridas profundas e traumáticas vividas no seio familiar. A partir destes relatos, surgiu o desejo de compreender como essas relações, permeadas de tanto amor, afeto e consanguinidade, poderiam também ser tão violentas e repressoras do ponto de vista racial.

R7: Quantas famílias você acompanhou para a sua pesquisa?
Lia Vainer: Realizei 13 entrevistas com diferentes famílias. Devido a limitações naturais de um trabalho de pós doutoramento e à quantidade de dados coletados, escolhi cinco destas entrevistas para construir a narrativa que saíra no livro.

R7: Você fez três anos de pesquisa. Foi fácil encontrar as famílias para o seu trabalho?
Lia Vainer: Encontrar as famílias foi a parte mais fácil da pesquisa, muita gente que eu conheço se voluntariou a participar da pesquisa, indicou amigos, familiares etc... Difícil foi realizar as entrevistas. Um dos maiores desafios foi o de dedicar a atenção para o jogo de silêncio e não-ditos. Parte importante da pesquisa foi a observação de ‘quem fala o quê’, ‘como é falado’, ‘o que é silenciado’ na frente de uns e dito na frente de outros, bem como as posições hierárquicas de praxe que ocupam as falas de cada integrante no interior das relações familiares. Minha percepção, nesses casos, é a de que em todas as famílias haviam alguns assuntos que não podiam ser ditos por todos.

R7: Tinha muito material acadêmico sobre relações inter-raciais e familiares?
Lia Vainer: No Brasil não é um tema muito pesquisado na área da psicologia. Existe material em outras áreas como sociologia e antropologia. Contudo faltam estudos que procurem compreender como os estereótipos e hierarquias de raça aparecem nas dinâmicas familiares, em suas estruturações e nas experiências emocionais que mobilizam e são mobilizadas nas dinâmicas familiares. Acho que isto é um ponto a se destacar, pois é no mínimo sintomático, e próprio dos privilégios gerados pelo racismo, que em uma sociedade marcada por desigualdades raciais como a nossa em que o racismo produz tanto sofrimento psíquico e familiar tão poucos psicólogos tenham se debruçado ao tema.

R7: Você está escrevendo um livro que deve se chamar Tensões Entre a Cor e o Amor. Que tensões são essas?
Lia Vainer: Falar de cor, raça e racismo dentro de um núcleo familiar é sempre algo muito tenso, exatamente porque pressupõe-se, de forma romantizada, que há dentro das famílias um “amor incondicional” que impede de se falar abertamente de como as hierarquias estruturais de nossa sociedade também podem se repetir e serem legitimadas no interior das famílias. As tensões aparecem nestes dois sentidos, de não se falar, mas também de perceber que infelizmente o racismo da sociedade mais ampla também acontece nas relações permeadas por amor e afeto. Nas entrevistas temos muitos relatos de vivências racistas que se estabeleciam diretamente na desqualificação do corpo negro. É na cor, no cabelo, no nariz que o ódio racial muitas vezes se concretiza e, desta forma, o corpo é impedido de ser pensado como local e fonte de prazer. Ao contrário disto, torna-se um corpo odiado, visto como foco permanente de sofrimento.

R7: A sociedade brasileira tem muita resistência em admitir que o racismo existe. Nas famílias também acontece isso?
Lia Vainer: Sim, acredito que de forma ainda mais exacerbada, pois no Brasil as pessoas acreditam que por ter amigos ou até familiares negros(as) não são racistas. Nessas horas gosto de fazer uma analogia com o machismo. Você já viu algum homem dizer que não é machista e como prova disto alegar que até é casado com uma mulher? Não tem lógica. Pois é muito possível ser casado com uma mulher e ainda assim achar que ela deve trabalhar mais em casa, achar que ela tem capacidades intelectuais menores e até mesmo agredi-la fisicamente. O racismo no Brasil pode funcionar da mesma maneira é um racismo que não impede intimidade, mas ao mesmo tempo há uma supervalorização da branquitude em contraponto a uma desvalorização do negro.

R7: Quais as formas mais comuns de comentários ou atitudes racistas que acontecem no núcleo familiar e que passam despercebidas?
Lia Vainer: Pode ir desde formas muito sutis, como por exemplo uma moça que narrou que a mãe dela branca, achava que o marido dela negro era preguiçoso quando ele após o almoço ao invés de ajudar com a louça sentava para ver o jogo de futebol com os cunhados e sogro (brancos), mas ao mesmo tempo achava que o marido da irmã — branco — não precisava ajudar nos afazeres domésticos. Ou seja, um racismo que exige que a pessoa faça muito mais como que para “compensar” o fato de ser negro. Ou até casos mais violentos em que o marido chegou a chamar a esposa de macaca em uma briga de casal. Uma coisa ficou evidente, nos momentos de conflito (normais em famílias) o racismo que até então poderia estar “camuflado” aparece mais explícito.

R7: Com que idade as famílias com membros de raças diferentes devem introduzir o tema do racismo nas conversas? Quando mais cedo melhor?
Lia Vainer: Acredito que desde bebê devemos construir formas de identidade positivada, com bonecas e bonecos negras e negros, heróis negros, e representatividade, pois esta é uma forma de construir auto-estima e defesa para um mundo racista. Contudo, falar sobre as dores do racismo ou história da escravidão deve ser mais tarde quando as faculdades mentais e racionais já estão formadas pois é uma história muito dura e difícil de ser compreendida como estrutural e não apenas individual quando se é muito pequeno, e falar sobre o racismo nu e cru para crianças também pode produzir muita insegurança.

R7: O que os membros das famílias devem fazer para não reproduzir o comportamento racista dentro do núcleo familiar?
Lia Vainer: Acho que este é um ponto importante, o que garante uma construção racial positiva e saudável é a consciência racial dos membros da família, tanto para os brancos quanto para os negros. Os brancos precisam se perceber também como parte do problema e se perceberem racializados, e portanto, identificarem que há privilégios na branquitude, e a partir daí fazer uma auto-vigilância para desconstruir o racismo com que esta identidade foi construída em todo ocidente. Apesar de todo racismo já falado anteriormente é preciso também pensar que a família pode ser um dos espaços privilegiados para o desenvolvimento de estratégias para o enfrentamento, acolhimento e elaboração da violência racista vivida na sociedade de forma mais ampla. Em uma das famílias entrevistadas os membros brancos sentiram-se em um lugar de duplo pertencimento, ora privilegiados pelo fato de serem brancos, ora discriminados por estarem ao lado de negros. Desta vivência surgiu a empatia e a solidariedade para que estes produzissem uma consciência anti-racista e investirem tempo e energia para produzirem um ambiente saudável para os membros negros da própria família.
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Mais um filho pardo
Depoimento Maria Santos, uma mulher negra que faz parte de uma família inter-racial

Não é tão simples, numa família inter-racial expor como se sente. Muito menos, quando seus pais têm uma visão de que, se você reclama, você se faz de vítima. É fraco. Não sabe se defender.

O racismo chegou na minha vida bem cedo. Lembro bem dos anos escolares, das crianças ou me ignorando ou me tratando como inferior. Ao chegar em casa, contava aos meus pais e eles não davam importância. Minha mãe, que parece uma índia pálida, só me dizia: “Xingue-os de volta”. Mas eu nunca consegui. Nunca consegui retornar aquelas palavras tão cruéis. Eram doloridas demais para saírem de mim.

Aos cinco anos, fui acometida as sessões de alisamento químico nos cabelos. Hoje tenho 25 anos e são 20 anos com produtos que mudaram o meu cabelo e toda sua estrutura e eu não sei o que tenho na cabeça. Já desisti da transição quatro vezes, por insistência de minha mãe.

Minha irmã não é negra. É pálida. Puxou a família de mamãe, que é 70% branca e 30% indígena. Desde criança, as pessoas nos comparavam, sempre diziam que ela era a mais bonita. Meu pai, que é negro, percebia que era pela diferença de cor e, endossava os comentários muitas vezes. Ouvia aquilo e fingia que não entendia. Mas era pura dor. Sempre.

Crescendo, observava que minha família é muito racista, até a parte negra é o que me choca. “Moreninha”. Cansei de ouvir muito isso. “Seu povo moreno”. Somos negros e todos temos consciência disso dentro do nosso ciclo familiar, mas para alguns ainda é vergonhoso admitir isso e notar essa situação me entristece. Mas não me deixa aflita a ponto de desistir da minha luta que é fazer que aceitemos quem nós somos.

Meus pais e irmãos, até a minha sobrinha, são cheios de comentários racistas. Atualmente, virei a chata que vê e diz que tudo é racismo. O problema é que as situações só demonstram isso. Minha mãe, principalmente, carrega racismo velado até os dedos e ela não nota que é um problema.

Nós ainda discutimos muito, mas estou tentando, pacientemente, desfazer isso. Nunca vi isso em famílias totalmente negras. Ao contrário. Vi mães que sempre souberam reforçar o quão lindo é ser negro e, na minha vida inteira, eu nunca vi. Nunca vi minha mãe me dizer: “Você é linda sendo assim”, mas que tive sorte por ter puxados os traços brancos da família, como dedos, lábios, mãos, nariz e afins.

A luta é diária, é árdua, mas todo dia, é um desafio de paciência para desconstruir os pensamentos monstruosos que rondam meu próprio lar.

Não é conto, nem fábula, lenda ou mito
MC Soffia fala sobre representatividade e infância da criança negra

Foto: Divulgação
R7: Quando você vai em uma loja de brinquedos você vê bonecas negras?
MC Soffia: Não tem bonecas negras. Assim, uma ou outra. Mas são caras. Então a criança que é da periferia não vai conseguir ter uma boneca dessas porque é muito cara. Aí a boneca que é branca, que é a mais barata, a mãe vai comprar. Só que a criança não vai se ver representada nessa boneca. Então, tem que ter mais bonecas negras pras crianças se verem mais representadas. Não é pra ter uma ou outra. Elas precisam se ver nas bonecas. Eu sempre tive bonecas negras que as minhas avós fazem. Então, eu sempre era a única menina que ia com uma boneca negra para a escola. E as meninas falavam: “nossa, essa boneca se parece com você”. E eu via várias amigas minhas negras com bonecas brancas e eu falava: “você precisa ter uma boneca parecida com você”. Aí elas falavam: “eu não tenho”. É uma coisa chata, porque a menina pensa que não vai ter uma filha negra. Tem bastante pessoas que falam que a boneca parece com ela, mas não parece. Devem ter mais. E tem bastante, mas não são mostradas.

R7: Você se vê representada na TV?
MC Soffia: Eu não me vejo representada na mídia, porque nós somos maioria e deveria ter mais mulheres negras representadas. Não tem que fazer só papel de empregada, tem que fazer papéis bons. Tem uma ou outra. A criança não vai se ver representada na televisão. Nas novelas infantis, principalmente, precisa ter uma criança negra sendo a principal. Não sendo a criança bobinha, não sendo a criança burra. Temos que mostrar que somos inteligentes, que sabemos várias coisas.

R7: Você tem uma música que chama “Rapunzel de Dread”, que fala para que as crianças criem uma princesa que pareça com elas. Você consegue criar uma princesa que pareça com você?
MC Soffia: Consigo e queria que mais crianças criassem. Porque na escola tem aquela coisa de a professora falar pra desenhar uma princesa com “cor de pele”. E a cor de pele é o rosa. A criança vai desenhar como todas as crianças e não é essa princesa que está vendo. Desenha sua família e ela tem que desenhar com cor rosa? Então na escola tem que falar para desenhar como a família é. Porque teve vezes que eu tava na escolinha e a professora falou para eu desenhar com cor de pele e eu desenhava de marrom. E ela dizia: “não. É de cor de pele”. E eu dizia: “mas é assim que é a minha família”. Aí ela falou: “então tá bom. Mas a gente tem que pintar tudo igual”. Mas a minha família não é igual a deles. Cada professora tem que pensar que cada um tem um tipo de família. Eu falo que a princesa pode ser do jeito que ela quiser. Ela pode andar de skate, empinar pipa, que ela não deixa de ser princesa. O menino pode ser princesa também se ele quiser.

R7: Como você acha que sua música ajuda outras crianças?
MC Soffia: Cada pessoa eu vou ajudando. Eu penso assim e elas podem começar a se aceitar. As crianças têm que falar nas escolas sobre a cultura africana. Também falo para elas aceitarem o cabelo. Então, vou fazer mais músicas para ajudar mais crianças e adultos.

R7: Você fala sobre machismo, racismo, temas que são muito difíceis de tratar. Como que esses temas são tratados dentro da sua casa?
MC Soffia: A minha família sempre conversou sobre esses temas, então quando eu nasci elas sempre foram falando e me explicando. Eu sempre cresci com esses temas na cabeça. Mas a sociedade vem mais forte. Mesmo minha família explicando, eu ainda quis ser igual ao que a sociedade quer. Eu faço a música também para que as crianças se gostem, para que elas não queiram ser o que a televisão está mostrando, a não ser que tenha ali alguém representando elas. A gente vá tentando mostrar isso. Nós podemos estar na mídia. Esses temas sempre falaram na minha casa.

R7: Você já sofreu com o racismo? Como você lida com uma pessoa racista?
MC Soffia: Eu já sofri racismo e ainda sofro. Quando eu não me vejo representada na televisão, isso é o racismo. Quando uma pessoa negra é morta na periferia, isso é racismo. Quando uma mulher negra é estuprada, é um racismo. Quando nós não podemos entrar em um lugar e já vem o segurança querendo travar a gente, é racismo. Quando uma menina quer alisar o cabelo para parecer a mulher que tá nos comerciais, é racismo. Então, nós ainda sofremos com o racismo. Já sofri pessoalmente, mas a gente sofre todos os dias na sociedade. E a resposta que eu dou é na música e cada um tem a sua forma de ajudar
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Inacreditável, mas seu filho me imita
Uma entrevista com Malía, de 18 anos, a “Barbie Negra”

O R7 entrevistou a jovem que serve de inspiração para meninas e meninos negros. Com uma moda acessível, customizando coisas que ela já tem em casa, ela mostra que é possível ficar linda sem gastar muito.

Malía é cantora, moradora da Cidade de Deus, comunidade na zona oeste do Rio de Janeiro, e se tornou uma verdadeira “it girl” nas redes sociais. Seu perfil no Instagram, por exemplo, tem cerca de 29 mil seguidores. Além da moda, a jovem também canta como um verdadeiro anjo e posta vídeos com suas interpretações de músicas. Leia, a seguir, a entrevista na íntegra:


Foto: Reprodução/Instagram
R7: Quando você começou a se achar bonita?
Malía: Graças a minha mãe, sempre fui uma criança que se achava bonita. Quando eu tinha quatro anos, eu quis colocar meu cabelo liso e ela falou “meu Deus”. Eu sabia que seria uma coisa que seria uma dificuldade mesmo da minha vida. Eu já sabia que eu chegaria nos lugares e as pessoas não achariam o mesmo que eu. A minha mãe não alisaria o meu cabelo aos quatro anos, mas eu não tinha consciência para saber. Mas eu já tinha aprendido mais ou menos a como lidar com as outras pessoas. Se eu não achar que minha opinião na minha vida tem valor maior, cara, acabou.

R7: Qual é o recado que você quer passar para as meninas negras?
Malía: O recado que eu quero passar é que eu posso ser o que eu quiser. E ser com o que tenho. Eu não tenho dinheiro para comparar as coisas. As pessoas perguntam: “Onde você comprou”? E eu não sei. Eu uso o que eu tenho. Quando eu era menor, eu pedia as coisas para minha mãe e ela falava “Filha, eu não posso te dar”. Uma vez eu falei para a minha mãe: “Eu queria tanto alguma coisa quadriculada”. Aí ela me olhou com os olhos cheios de lágrimas e falou: “Filha, eu não posso”. Mas isso vai muito de mim. Quando eu era criança, eu me maquiava e as pessoas perguntavam para minha mãe: “Você maquiou a menina”? E ela falava: “Não, ela se maquiou sozinha”. Eu sempre andava com a minha bolsinha rosa...

R7: Como você vê a questão de estar sendo uma influência para as meninas negras?
Malía: Eu vejo isso como algo maravilhoso. É a informação. Quando uma menina fala “eu quero me parecer com você”... Mas para mim, o grande problema é elas saberem que eu sou uma continuidade delas, eu não sou além. A pessoa que está ali é uma pessoa igual a elas. Ela precisa entender o processo. Aquela pessoa que você gosta e que parece com você é uma parte desenvolvida de você. Nem todos têm a mãe que eu tive, muitas vezes a informação... sou só a continuação do que elas são. Eu faço parte delas.

R7: Você canta. Qual o recado que você quer passar para as meninas que também querem seguir essa carreira?
Malía: A verdade delas na vida deve prevalecer. Música para as pessoas é incerto, mas tudo é incerto. Eu não tinha dúvidas [de que era isso que eu queria fazer]. Você tem que acreditar realmente. Se é isso que você realmente quer, você vai conseguir. Acreditar em você mesmo. Somos educados a ouvir muito as pessoas e aí você acaba se perdendo. Se você não tiver segurança, as outras verdades que existem abalam muito. Quando nós não estamos seguros, pode prejudicar. A mensagem é de acreditar na sua verdade.
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